A VIAGEM DE CHIHIRO: O AMADURECIMENTO GRADATIVO

 


O longa de animação que conquistou maior sucesso em 2001 foi “Spirited Away”, ou em português: “A viagem de Chihiro”. E com razão o filme figurou espaços antes pouco vistos por produções estrangeiras - ainda mais sendo de países asiáticos.


A verdade é que Chihiro virou a protagonista preferida de muita gente antes mesmo de os dramas asiáticos estarem em moda aqui no Ocidente. Isso porque o filme fala sobre amadurecimento, evolução pessoal, consciência emocional e resiliência. Tudo isso antes desses temas serem centro de debates abertos e tão populares quanto hoje em dia.


Pautar uma protagonista feminina em debates tão curiosos para o seu tempo pareceu revolucionário. E isso foi o que chamou a atenção das mulheres adultas. Das crianças, o longa marcou uma vida inteira por causa do seu contexto mágico, seus cenários coloridos e pela gritante distância conceitual dos filmes infantis que se destacavam na época.


“A viagem de Chihiro” nasceu para o grande público em meio ao estouro do renascimento dos estúdios da Disney. Em um cenário hostil para produções animadas que não falavam sobre princesas sendo salvas.


E é com a emoção de resgatar essa obra prima da minha infância que começo o texto de hoje. Não só um texto, mas uma jornada pela importância do amadurecimento gradativo que o roteiro apresenta.


CHIHIRO E O MUNDO QUE CONHECEU


Mudança é um tema que assusta muitos adultos, mas crianças são ainda mais tendenciosas a repudiar a ideia. E isso acontece por uma variedade de fatores, mas podemos imaginar que o real medo de enfrentar mudanças, seja em qualquer fase da vida, tem muito a ver com algo primitivo da primeira infância. Segurança é algo que nasce conosco, não só instintivamente como biologicamente - levando em conta a relação humana com o medo de escuro, por exemplo…


E é nesse contexto que conhecemos Chihiro. Ela é uma criança, esticada do banco traseiro do carro dos pais, presa em um sentimento de depressão pela primeira grande mudança de sua vida. Saindo de uma cidade - que ao que tudo indica é grande -, para ocupar um novo lar ao lado dos pais.


Abraçada em seu buquê de flores e seu cartão de despedida dos amigos, nossa protagonista se vê presa em um ambiente que julga hostil, infeliz com a decisão da mudança e com a incapacidade de alterar a realidade que vive.


Quando o pai de Chihiro perde o caminho que deveria seguir e se enrosca em uma estrada nada usual, passando por túmulos e espaços de orações ancestrais, a família se vê diante de um túnel por onde carros não passam.


O trio se envereda pelo túnel, atravessa a cidade vazia e alcança uma barraca que serve comida sem nem mesmo ter alguém por perto. E é nesse contexto, enquanto Chihiro se afasta dos pais esfomeados para explorar o lugar, que sua família se transforma em uma dupla de porcos e ela se vê sozinha em um ambiente ainda mais assustador do que o que ela tinha imaginado anteriormente.


Personagens entram e saem de foco, ganhando relevância ou não no cenário mágico em que Chihiro fica presa. Assim conhecemos Chihiro, e assim conhecemos todo um outro mundo: um lugar cheio de deuses e magia.


INSEGURANÇA, TRAUMAS E RESILIÊNCIA


Chihiro começa sua jornada cheia de medo e inseguranças. Assustada demais para se sentir confortável no novo lugar, seja pela magia que a circula e ela desconhece, seja pelas relações instáveis que parecem ganhar força ao seu redor. Tudo torna sua vida uma bagunça e uma insegurança constante.


Gradativamente, ela ganha a confiança das pessoas ao seu redor, assim como começa a colecionar afeto dessas figuras, sejam elas negativas ou positivas. Em resumo: ela amadurece gradativamente.


Como tal, mais perto do fim da história, Chihiro se depara com um trauma de sua primeira infância, algo que ela parecia não se lembrar, mas que a marcou profundamente e que ela precisava enfrentar. É descobrindo e enfrentando seu trauma, que Chihiro finalmente ganha forças para se sentir segura em definitivo e, assim, consegue a segurança necessária para resgatar seus pais e voltar para casa.


De longe, a principal mensagem de “A viagem de Chihiro” é a resiliência dela em viver novos contextos e abraçar, mesmo que cheia de medos e inseguranças, tudo que lhe é oferecido. Sendo sempre grata, demonstrando afeto sem temor e lutando de frente contra cada pequena adversidade.


Mas apesar disso, a história é, de longe, sobre amadurecimento gradativo. É sobre dar tempo ao tempo, sobre valorizar as pequenas evoluções pessoais e sobre canalizar as energias em versões de si que façam mesmo sentido.


Lidar com traumas faz parte do processo de amadurecer. Lidar com feridas emocionais, com medos, com a distância de casa e até mesmo com a falta de reconhecimento de quem nos criou e amou a vida inteira. Se afastar um pouco a fez sentir os pais como animais irracionais que não conseguia reconhecer dentro de um galpão lotado. Só ao se afastar verdadeiramente, aprender consigo e com o redor, que seus pais voltaram a ser pessoas que ela poderia reconhecer e buscar.


O ABSTRATO E AS TEORIAS


Como todas as obras de Hayao Miyazaki, “A viagem de Chihiro” é uma história cheia de espaços e metáforas. Contando tudo por uma ótica lúdica, quase como um caleidoscópio emocional, suas tramas são feitas para impressionar, inspirar e comover.


Pensando nisso, é importante ressaltar que cada coisa tem seu simbolismo único, seja nesse ou em outro de seus filmes. Mas em especial neste, as metáforas estão abertas para interpretações - e são sempre as mais importantes e fortes. Como a que mencionei: seus pais como porcos. Animais com os quais ela não consegue mais se comunicar ou reconhecer.


O próprio filme age como uma pintura, tal como a metáfora dos porcos: você precisa se afastar para ver o quadro todo. E isso se repete muito ao longo do filme, com muitas metáforas que parecem inocentes, mas são verdadeiras lições e críticas.


Desaparecer gradualmente também é algo que se mostra recorrente na história, e sempre que isso acontece, a pessoa que sente seu corpo ficando mais fino, está passando por alguma mudança significativa em sua vida. É o processo de evoluir e perder algumas coisas, para voltar a renascer e se tornar alguém melhor.


E entre tantas metáforas importantes, teorias confusas surgiram ao redor da história, como aquela bem famosa, que diz que o filme fala sobre prostituição no Japão na época das casas de banho. E mesmo que seja possível crer que “o cheiro de humana” tenha a ver com uma metáfora sobre a castidade e a virgindade, levando em conta o ambiente, essa versão é rasa.


Hayao Miyazaki é um apreciador das pequenas coisas da vida, responsável por algumas das animações mais importantes do Japão nas últimas décadas, e falar sobre prostituição (ainda mais de forma tão direta) jamais seria algo que sua personalidade pareceria querer fazer. Seu estilo é outro, não esse. E repensar a trama, pensando sobre processos e até sobre política, faz muito mais sentido, já que esses são alguns de seus temas preferidos.


♥ Olive Marie

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