ANNA BUNINA: A RÚSSIA PARA MULHERES

 


É um desperdício - e uma ofensa - começar a falar de Anna Bunina mencionando autores russos. Homens, em geral, têm uma vida simples e fácil, porque o mundo é feito para eles. No território russo, então, isso sempre foi mais evidenciado.


Se você acompanha um pouco da cultura russa, sabe que para além do caos que estão vivendo no atual momento, sua jornada sempre foi de restabelecer preconceitos dos mais básicos, colocando as escalas sociais em uma régua sinistra sobre a vida. Vide a relação russa com a comunidade LGBTQIAP+.


Ser mulher no cenário mundial já é complicado. Ser mulher artista é ainda mais. E ser mulher artista no cenário mundial no século XVIII era ainda mais complexo. Decidir por seguir uma carreira, usando mais do que seus dons domésticos para isso, poderia jogar qualquer mulher dentro de um cesto de vexame, incertezas e repugnância.


Comparar Anna Bunina com outras mulheres também seria igualmente tolo. De que nos importa, nesse momento da vida, sobre outras carreiras? Anna Bunina foi a primeira delas, abriu portas, e foi responsável por dar uma liberdade de carreira maior para as mulheres russas. Nada mais de ser governanta ou instrutora.


A Rússia, em toda a sua glória literária, não poderia ser deixada apenas aos homens. E assim fez nossa protagonista de hoje. Vamos, por alguns minutos, calar as canetas e entender quem revolucionou o mercado de carreiras femininas na Rússia.


NASCER NA VIDA E NAS ARTES


Não se tem tantas informações sobre o nascimento e a infância de Anna Bunina, mas o que sabemos já é o bastante para entendermos como funcionava seu espírito de revolução ao lar. Nascida em 1774, Anna Bunina perdeu a mãe durante a infância e foi delegada à sua tia sua educação básica. Foi na casa da tia que Bunina foi instruída a ler, escrever e a resolver as quatro operações básicas de matemática.


Nas décadas de 1770 e 1780, esse era um esforço considerado inútil para o sexo feminino, afinal a ideia russa pregava que mulheres eram feitas para serem boas esposas e donas de casa. Por alguma razão que desconhecemos - já que não temos uma vasta compreensão da sua vida privada -, a família de Bunina se recusou a seguir esse padrão.


O pai de Anna Bunina a viu chegar à fase adulta, e sua morte em 1802 a deixou bem estabelecida para os padrões da época. Em especial para uma mulher de 28 anos que ainda não tinha se casado. E foi nesse momento que ela se mudou para São Petersburgo, empenhada em ter uma vida mais metropolitana e estar próxima do irmão, que era um oficial da marinha russa e passava todo o seu tempo por lá.


A questão é que Bunina tinha crescido em um lugar chamado Urusovo, que ficava no interior de Moscou. Isso quer dizer que a vida rural era o lugar onde ela estava habituada a viver, e mesmo a herança que seu pai lhe deixou - que não era nada mal para a sua situação, volto a reiterar -, se esvaiu como água em um lugar tão agitado quanto São Petersburgo.


E sim, apesar de estarmos falando do século XVIII, São Petersburgo já era um centro russo de importância e nome. O estilo de vida era mais caro, as interações sociais eram mais comuns do que no campo e a arte era mais aberta e possível.


A CARREIRA QUE FLORESCE NO CENTRO CULTURAL


São Petersburgo é um centro cultural russo desde as eras de tsares. A grande elite intelectual russa sempre foi apaixonada pelo lugar, e estar instalada ali foi de grande importância para que Bunina se focasse em seus estudos pessoais e começasse a almejar, mesmo que de forma inocente, uma carreira dentro do círculo de cultura local.


Segundo algumas fontes, foi graças ao irmão que Bunina passou a ter um acesso maior com a comunidade artística local, e com as dívidas se contraindo rapidamente enquanto a herança sumia em pouco mais de dois anos, e foi assim que Anna Bunina passou a publicar seus primeiros poemas.


Apesar de não ser um ganho significativo, o dinheiro que entrava com as publicações de sua obra inicial foi responsável por começar a estabelecer um novo sistema de carreira para o sexo feminino. As mulheres começaram a ter portas abertas, mesmo que temporariamente fosse apenas ela lutando contra a maré de maneira pública e conhecida.


E como sempre na história de sucesso feminino, foi outra mulher que reconheceu a grande poeta que havia naquela alma, e assim Bunina ganhou estabilidade financeira e destaque no círculo artístico. Isso porque a tsarina da época, uma mulher chamada Elizaveta Alekseyeva¹, gostou tanto do que leu de Anna Bunina, que lhe concedeu uma pensão anual de quatrocentos rublos.


Esse reconhecimento veio graças a publicação do seu primeiro livro completo. Uma antologia de sua obra, que foi intitulada de “Musa inexperiente”. Isso em 1809.


Ao longo dos próximos anos, Bunina se focou em fazer traduções enquanto escrevia e publicava. E muito da literatura francesa alcançou público russo naquele período graças a ela.


É importante ressaltar que Anna Bunina não foi a primeira mulher a escrever poesia, mas foi a primeira a receber fama e ter um sucesso primoroso em seu tempo. Foi ela a responsável por dar esperanças para mulheres que publicavam e pensavam em publicar.


DECLÍNIO PESSOAL, ASCENSÃO PROFISSIONAL


Estando no auge de sua carreira, sendo reconhecida pelo estado russo como a primeira mulher a fazer sucesso na carreira literária, inundando a cultura russa com traduções da língua francesa e sua obra pessoal, Bunina adoeceu.


É preciso lembrar que naquele tempo a medicina não era tão desenvolvida e também passava por evolução em apenas algumas partes do mundo. E mesmo a Rússia sendo uma grande potência política e econômica, a área da saúde estava se desenvolvendo com mais sucesso e velocidade na Europa Ocidental.


Buscando por ajuda mais eficiente para o câncer que tinha acabado de descobrir, Anna Bunina partiu para a Inglaterra em 1815. E estendeu sua estadia no país até 1817, quando notou que apesar dos progressos no tratamento, dificilmente teria como sair dessa situação.


Bunina voltou para a Rússia, finalmente ganhando um incentivo maior do governo pela sua contribuição na arte, e viveu com a ajuda de uma pensão vitalícia por suas contribuições para a cultura do país. E como sua doença avançava de forma devastadora, se manteve entre Moscou e sua cidade natal.


Vivendo longe de São Petersburgo, e consequentemente longe do principal foco de cultura nacional, ela foi se permitindo relaxar dentro de sua agonia pessoal e diminuiu seu fluxo de escrita gradativamente, até finalmente parar. Enquanto isso, deixava um legado de trabalho próprio e traduções.


Também precisamos entender, que durante sua estadia na Inglaterra, Anna Bunina criou uma relação de amizade por correspondência com Walter Scott. E você entendeu direito: o grande romancista histórico, Sir Walter Scott.


Mas Bunina não era estranha as atenções de grandes nomes da literatura mundial. Não só por consumir suas obras em volume excessivo, mas porque ela vinha de um patronato de Alexander Shishkov. Ou seja, sua obra alcançava grandes lugares já em seu tempo, e levando em conta as possibilidades de seu tempo para a carreira feminina na área, é de grande importância entender onde ela chegou. E foi longe.


Para seus padrões, seja por seu sexo ou por sua nacionalidade, a verdade é que Bunina realmente alcançou destaque. Ver sua carreira descer em ritmo consideravelmente acelerado deve ter sido um ponto de partida para que ela escolhesse voltar para sua cidade natal e visitar, poucas vezes, Moscou.


Não temos muito como saber o que era dito em suas correspondências, seja com seus companheiros de pátria ou com Walter Scott, mas precisamos entender que ali já se formava, também, o nascedouro de mulheres recebendo prestígio dentro de círculos literatas.


Bunina inaugurou essa formalidade na Rússia, e depois disso podemos mencionar Virginia Woolf na Inglaterra, Gertrude Stein na França e Pagu no Brasil, como exemplos mais populares. A arte já começava a não ser mais um monopólio popular e de sucesso apenas para o sexo masculino.


Ela faleceu em 1829, com 55 anos de idade. E também podemos pensar o quanto isso é curioso. A expectativa de vida vem se alongando dos 30 para mais há poucos séculos, porque o estilo de vida da raça humana era sempre perigoso ou excessivo. Curiosamente, mulheres na literatura, durante os anos 1700 e 1800 começaram a estrear uma modalidade peculiar em toda a Europa (Ocidental e Oriental): a longevidade.


Alcançar os 55 anos era uma coisa importante naquele período, porque mostrava o quanto você tinha condições de prolongar sua vida, mantendo sua higiene no melhor padrão possível do seu tempo e também se alimentando e vivendo de forma mais correta e permissiva. A parte ruim, é que ela passou sua última década sofrendo e lutando contra uma doença altamente degenerativa e fatal.


Dessa forma, entendemos a importância e o impacto de Anna Bunina na literatura russa e mundial. E também no movimento que nasceria anos depois: o feminismo.


Apesar de ser complicado tentar encaixar mulheres antecessoras ao movimento dentro desta caixa de pensamento, precisamos entender que revolucionar em seu respectivo tempo, levando em conta o círculo social e oportunidades que Bunina teve, ela era uma “rebelde” para os padrões sociais. E, obviamente, sendo fadada ao óbvio machismo e preconceitos que reproduzia em seu dia-a-dia (e sabemos que reproduzia, porque era uma época em que nada disso tinha um debate aberto), ainda assim, ela estava navegando sozinha neste mar de incertezas, questionamentos e debates.


Anna Bunina foi - e sempre será -, uma força motivadora para a esperança feminina em romper barreiras.


♥ Olive Marie

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