O PEQUENO CADERNO DAS COISAS NÃO DITAS: A TRAJETÓRIA DE CADA UM

 


Julian é um artista excêntrico da “velha guarda” inglesa, quando grandes nomes do meio artístico comandavam a mídia com suas aparições públicas. A época de ouro do Reino Unido, com Rolling Stones, Beatles e Vivianne Westwood sendo o foco da atenção mundial e das regras de estilo e espírito livre.

Já na terceira idade, viúvo e se sentindo sozinho, Julian contou sua história em um caderno e o abandonou no café local. Monica, dona do lugar, encontra o caderno e se emociona com a história de Julian.

Empenhada em ajudar o senhor idoso que tem passado por momentos de solidão e abandono, ela cria um clube de arte para que ele ensine as pessoas do bairro. E também dá continuidade para o projeto de Julin, colocando sua história no caderno e o passando para frente.

Depois desse pontapé inicial, ainda conhecemos a história de um viciado em recuperação, de uma influencer digital que está cansada da vida perfeita que leva nas redes sociais, um australiano em mochilão pela Europa e uma senhora que adora uma boa fofoca contada.

De maneira interessante, Clare Pooley conseguiu unir todas essas narrativas em um lugar só. Entrelaçando histórias e pessoas, debatendo pontos de discussão da vida moderna e relembrando o passado sem nenhum tipo de filtro nostálgico.

E entre todas as narrativas apresentadas, a que mais cativa é da Monica…

A SOLIDÃO DA MULHER MODERNA

Tentando limpar a minha mente sobre a minha opinião pessoal sobre o tema, a verdade é que a solidão feminina é imensa e segue por muitos caminhos complexos e dolorosos.

Além da solidão da mulher preta, a mulher já passa pela solidão em si. Dentro dessa categoria da solidão feminina, temos a solidão da mãe solo, a solidão da mulher indígena, a solidão da mulher periférica, a solidão da mulher asiática e por aí vai. Ser mulher é mergulhar em um mar de solidões.

Obviamente essas solidões podem ser combinadas… Dá para ser uma mulher preta e dá para ser uma mulher preta periférica. E também dá para ser uma mulher preta, periférica e PcD. E essa solidão vai aumentando de nível, como um game interativo da vida real que ninguém quer jogar.

Quando a Monica conta a sua história e se mostra assustada e revoltada, entendemos. Especialmente porque a solidão da mulher do século XXI é muito mais complexa do que a solidão da mulher do século XIX, por exemplo.

Não diminuindo ou comparando, porque todas as dores existem e precisam ser sentidas. Mas a mulher moderna ainda passa pela solidão de ver outras mulheres sendo “felizes e não sozinhas” até mesmo quando estão em casa, no conforto do seu sofá. E não só em filmes ou livros, mas em tempo real, nas redes sociais.

Em tempos líquidos, onde as mulheres são cobradas por precisarem aceitar a solidão (afinal, você pode trabalhar, se sustentar e ser feliz de outras formas), fica complicado fazer as pessoas entenderem que a vida humana é ampla e temos o direito de ter um pouco de tudo.

A própria Monica, uma feminista ferrenha, entra em um debate pessoal consigo mesma. Se questiona se pode querer ter alguém, afinal, ela já é bem sucedida o bastante. Afinal, ela já deu check nos outros quesitos da vida que a sociedade costuma admirar. Afinal, o feminismo diz que ela precisa ser livre e independente.

Com um debate bem amplo sobre a visão feminista também, esse é um livro didático para explicar, de forma bem leve, para as mulheres o básico do movimento: você precisa do feminismo para escolher o seu futuro, até mesmo se o seu futuro é ser uma mulher casada e mãe.

RELAÇÕES HUMANAS EM EXCESSO

E se falamos sobre as relações da mulher moderna com seu corpo, sua trajetória e a força pessoal, por que não falar sobre relações de um modo geral?

Ser um ser humano é um trabalho complicado. A racionalidade, ouso dizer, mais nos atrapalha do que nos ajuda. E mesmo que o egocentrismo da nossa espécie teime em dizer o contrário, teimo em afirmar que somos sim irrelevantes em um contexto amplo da existência terrestre. Mesmo que sejamos a espécie dominante do planeta no atual momento…

Entre todas as personagens da história, me atrevo a dizer que quem protagoniza a trama são as relações humanas, e não alguém de fato. E mesmo que algumas dessas histórias se destaquem mais do que as outras, a verdade é que o livro é sobre pessoas.

Determinado em contar sobre as trajetórias pessoais de cada personagem, a trama tem como foco as relações humanas que são em excesso. Simplesmente porque o ser humano é um tipo de animal que, mesmo se gabando da sua racionalidade, é curiosamente tolo e altamente dependente.

Hazard é dependente de drogas, e é assim porque não consegue se relacionar com pessoas se não for em níveis alterados de consciência. Julian é dependente de seu próprio ego, prisioneiro do seu fascínio por ter perdido a mulher que amava. Alice é altamente dependente de likes, para suprir seu excesso de descaso familiar e abandono marital. E Monica… Bom, ela é dependente de si mesma, porque sente que não pode ser dependente de mais nada, além de algumas comédias românticas.

Quando usamos as relações humanas sem nenhuma moderação, nos tornamos uma raça fadada ao desespero e ao pânico. E é importante dizer isso, porque esse é um livro sobre pessoas que não sabem viver sem outras pessoas.

E sim, ninguém vive mesmo sozinho. Mas a questão é que, ter medo da solidão causa em todas essas pessoas excessos burros e desequilibrados sobre si mesmos. Porque mesmo que seja assustador se isolar e se entender, é importante saber quem somos antes de viver em sociedade.

Mas como encontrar um equilíbrio se, muito novos, somos incentivados a explorar percepções sociais complexas, como escolas e hobbies? Como entender que interações humanas precisam de descanso e cuidado? Que zelar pela saúde da nossa existência como indivíduos envolve mais do que se cercar de gente para não ouvir nossa consciência pessoal?

PARA ONDE ESTAMOS INDO

A resposta para essas perguntas é uma pergunta básica: para onde estamos indo?

Como sociedade? Provavelmente para um caminho sem volta de autodestruição, toxicidade alimentar e existencial e gradativa auto aniquilação. E eu sei: o cenário é péssimo. Mas é um fato e precisamos entender como isso segue e vai seguir.

Mas quando pensamos em para onde vamos como pessoas reais e físicas, como seres individuais, entendemos um pouco mais sobre as nossas respostas imediatas.

Muitos de nós estão indo, gradativamente, para a falta absoluta de interação humana. Seja por medo do que isso gera, seja por gradual abandono da nossa pessoa física, seja por indisposição para com o outro. E no fim das contas, como indivíduos, precisamos focar nossas atenções para não nos tornarmos robôs orgânicos.

Já dizia Pitty: “pane no sistema/alguém me desconfigurou”.

Altamente eloquente. Insuportavelmente atual. Assustadoramente antigo. Eu era criança quando essa música foi lançada, ainda assim, temos muito dela para entender os processos humanos como um todo. E é bizarro o quanto esse álbum dialoga com este livro. Obras produzidas com quase vinte anos de distância. Em países extremamente diferentes.

O elo entre a raça humana nos prova sua existência em momentos como esse, na verdade. Mas também é curioso o quanto a solidão pode ser viciante, o que causa estranhamento quando pensamos que precisamos de interação humana para continuar existindo, enquanto tentamos nos blindar e filtrar em como essa interação chegará em nós.

“O pequeno caderno das coisas não ditas” exibe bem esse panorama. E sou apaixonada em como isso funciona. Esse é, sem dúvida, um livro de muitas estrelas.

♥ Olive Marie

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