RUTH VON MAYENBURG: A ESPIÃ ANTI NAZISTA

 



1907 foi um ano como os outros, sem muitas coisas acontecendo e sem grandes destaques, exceto pelo fato de que as tensões cresciam em algumas partes do mundo, com revoluções e guerras que nasceriam nas décadas seguintes. Mas para além disso, 1907 trouxe alguém ao mundo que tem tido sua história apagada gradualmente: Ruth von Mayenburg.


Filha de uma família empoderada e poderosa, formada por aristocratas donos de minas, bem no coração da Áustria. Ou talvez devamos dizer que trazendo a Áustria no coração. Afinal, entre tantos roteiros complexos que sua vida poderia ter tomado, Ruth escolheu a resistência e a militância.


E começar a escrever sobre figuras femininas que fizeram história, sem nem mesmo mencioná-la, não só parece triste e desolador, como soa como um erro quase criminoso. Não há história de luta por igualdade e valorização da vida sem falar de mulheres que fizeram até mesmo o impossível para tornar o mundo um lugar melhor.


Talvez Ruth seja uma grande prova de que tudo que é feito com o coração é imensamente maior do que imaginamos. E como tal, a biografia de hoje será sobre ela: uma mulher que tornou o nazismo uma piada interna da resistência.


INFÂNCIA RICA E DESERÇÃO


Com uma infância pouco detalhada, Ruth von Mayenburg tomou uma iniciativa curiosa no início da fase adulta, justamente por ser herdeira de minas, parte de uma das famílias mais ricas da Áustria: entrou para o partido comunista pouco depois de atingir a idade adequada para a filiação de seu partido. E provavelmente isso nasceu na sua infância.


Dito isso, temos que pensar historicamente e não no âmbito pessoal. Isso porque, poucos anos antes de Ruth nascer, houve um incidente que abalou a ordem hierárquica da Áustria, e fez algumas engrenagens rodarem até os acontecimentos que culminaram na Primeira Guerra Mundial. E esse incidente foi o Incidente de Mayerling, que passou o trono austríaco para o arquiduque Francisco Ferdinando.


Se você se lembra das aulas de história sobre a Primeira Guerra Mundial, entende que a morte de Francisco Ferdinando, enquanto fazia uma visita à Sérvia, foi o estopim para os acontecimentos, e é fácil entender que se o herdeiro verdadeiro não tivesse falecido em Mayerling, as negociações teriam ocorrido, a Sérvia talvez fosse livre e as condições da Primeira Guerra - caso tivesse mesmo acontecido em um cenário menos problemático -, seriam completamente diferentes.


Mas depois do Incidente de Mayerling, a Sérvia ficou insatisfeita e revoltada com Francisco Ferdinando e tudo levou aos acontecimentos do assassinato do mesmo, no ano de 1914. Foi então que a Primeira Guerra rebentou entre países europeus que já estavam completamente imersos na possibilidade de uma briga mais intensa. E se você fez as contas, sabe que o cenário de guerra surgiu durante a infância de Ruth. Tendo passado o fim de sua infância e o início do amadurecimento social em um cenário de guerra e de pós-guerra, a filha da família aristocrata seguiu o caminho menos óbvio para as pessoas em sua posição: buscou o comunismo e o sentimento anti-monárquico.


Revolta por pensar que a monarquia absolutista, escravista e possessiva era a única responsável por disputas de poder? Talvez. E mesmo que sua infância não tenha sido arruinada ou miserável, como a de famílias pobres nesses momentos sombrios, as sombras da batalha sempre escurecem os mares mais límpidos.


CONDESSA VERMELHA


Depois de desertar da missão de ser uma aristocrata pró-monarquia, Ruth von Mayenburg ingressou no Partido Social Democrata do Trabalho da Áustria, isso quando tinha 25 anos de idade. E aí também começa sua relação com Ernest Fisher, um jornalista e filósofo austríaco que também estava envolvido com os assuntos do partido e que se recusava a aceitar o comando direitista em um país que estava tentando se erguer no pós-guerra, tal como a Alemanha.


E vale lembrar que, apesar do peso da responsabilidade ter caído sobre o povo alemão, é fato que foi por um governante austríaco que a Guerra se iniciou. Sendo assim, tal como a Alemanha, a Áustria também vinha lutando contra seus demônios pessoais e estava em um processo de reconstrução da sociedade e da economia.


Mas em 1934 um novo fantasma da mesma relação tensa entre os países europeus começava a surgir e se espalhar como uma doença infecciosa e contagiosa: o nazismo.


Indignada com a aceitação absurda que as ideias de Hitler vinham recebendo na Áustria, Ruth von Mayenburg, no auge dos seus 27 anos, fez as malas junto de Ernest e fugiu do país para um lugar onde o sonho socialista parecia estar fazendo sentido: a União Soviética. E foi por lá que Ruth passou a ter dupla identidade e recebeu o apelido de Condessa Vermelha por seus colegas socialistas.


Empenhada em desbancar o nazismo alemão antes que ele perdesse o controle, Ruth se infiltrou nas forças inimigas como espiã e conseguiu uma fonte confiável, que era amigo de longa data de sua família, e como espiã se chamou Lena.


Com o contato, o nome novo para burlar o sistema nazista (tanto na Alemanha quanto na Áustria) e com um nome interno que fizesse sentido com a causa, a Condessa Vermelha ajudou o partido socialista da União Soviética a ter informações claras e internas sobre as alianças que Hitler estava conseguindo no pré-guerra e sobre a visão política geral das pessoas do governo europeu naquele momento de tensão.


APOSENTADORIA DA CONDESSA


Longe de desacreditar do sonho socialista ideal, Ruth e Ernest trabalharam junto do poder soviético em prol de banir o nazismo do mundo, e com isso a Condessa Vermelha se manteve na ativa entre 1934 e 1938. Mas com o pacto entre Hitler e Stálin, que supostamente pouparia a URSS dos conflitos pessoais da Alemanha, o casal se viu forçado a abandonar o país que os acolheu, simplesmente por não serem capazes de se vendarem diante de tal atrocidade que estava acontecendo na Europa.


Aposentada do papel de espiã, Ruth continuou servindo o partido socialista de outras formas, como a supervisão de prisioneiros de guerra austríacos. Mas só depois de deixar uma marca tão grande na luta contra a proliferação nazista, sendo parabenizada pelo próprio Comissário da Defesa por seu trabalho em campo. Seus documentos e relatórios, com vazamentos das forças alemãs naquele período, seguem sem sigilo até hoje, porque foram os principais focos de informação de relevância para a defesa soviética contra o crescimento do partido de Hitler.


Finalmente de volta à Áustria, depois do fim da Segunda Guerra, Ruth se dedicou a trabalhos burocráticos dentro da Sociedade da Amizade Austríaco-Soviética por algum tempo, mas depois passou seu foco profissional para traduções e escrita. E como escritora, Ruth foi cirúrgica em recordar seus tempos como militante e espiã, e também manteve viva a memória de amigos que fizeram de tudo para manter o nazismo fora da vida das pessoas e curar essa doença do mundo.


Com quase 100 anos, Ruth von Mayenburg saiu do mundo sorrateiramente, sem pompa, tal como uma boa espiã. Seu trabalho e força de vontade ficaram eternamente gravados na memória de quem estuda e se aprofunda no tema de espionagem política durante os tempos de guerra, e como uma boa rebelde, faleceu na última década mais revolucionária que o mundo já viu. Mais especificamente em 1993.


Assim como o oceano mais azul e transparente, a vida de Ruth von Mayenburg é um livro aberto e pronto para ser descoberto e desbravado, e sua memória tem lutado para não sumir dentro de tanta desinformação e esquecimento que o Holocausto e o nazismo vem sofrendo. Correndo o perigo, não só de ser esquecida permanentemente, como também de ter seus esforços antinazistas perdidos por uma sociedade de memória curta, que beira o risco de reviver momentos tão sombrios da história mundial.


Hoje os louros são todos dela: a Condessa Vermelha. Que sua história seja capaz de sobreviver ao tempo, que sua força seja capaz de ser validada nos dias de hoje, e que Ruth e Ernest tenham suas memórias tão celebradas quanto vários outros casais que foram responsáveis por lutar pelo que acreditavam.


Que sejamos capazes de sempre lembrar!


♥ Olive Marie

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