MULHERZINHAS: AS MULHERES DA SECESSÃO

 



“Mulherzinhas” é um clássico da literatura mundial. Mas entender como isso aconteceu é um processo pouco explorado no meio literário. E isso acontece porque clássicos costumam não ser questionados. São clássicos e pronto. Sem debate.


E, no fim das contas, a verdade é que “Mulherzinhas” não vai ser o seu livro preferido da vida. E mesmo que for, será sob uma luz muito específica. Isso porque, apesar da atemporalidade das personalidades das irmãs March, o livro em si é muito datado.


Obviamente, a obra reflete pensamentos de seu tempo e momentos históricos específicos, contando sobre a experiência pessoal de cada um, naquele momento exato da história do mundo. Todos os livros são assim. Mas esse é um livro que é assim, mas de uma forma diferente.


A importância dessa obra específica de Louisa May Alcott tem a ver com o contexto familiar. Tem a ver com as personalidades muito distintas das irmãs, e como cada uma seguiu sua vida. Mas, antes de tudo isso, a atemporalidade do livro tem a ver com algo maior: o discurso feminino pró-feminista.


IRMÃS MARCH E A MARCHA FEMINISTA


Antes de falar diretamente sobre como elas entram na ideia de personagens feministas, precisamos discutir sobre o feminismo em si. E isso levando em conta cronologia e debate histórico.


E se você é do tipo que repudia ou não entende a razão do discurso feminista, precisamos fazer isso de uma forma didática. Sendo assim, vou tentar resumir sem parecer chato ou assustador. E sem ter palavras difíceis.


De forma simples, o feminismo é o movimento que surgiu ao redor do mundo, em momentos diferentes para cada país, no âmago das discussões femininas. Cansadas de passar necessidades quando seus maridos ou pais morriam, ou quando eram abandonadas pelos pais de seus bebês, as mulheres começaram a se organizar gradualmente em prol a ter direito ao trabalho remunerado.


Isso quer dizer que elas não estavam mais satisfeitas com a ideia de não poderem se sustentar. Com isso, o trabalho manual feminino foi inserido na sociedade, e se as mulheres movem a máquina social chamada mercado, elas têm direito ao voto. Se ganhamos e controlamos nosso dinheiro, precisamos ter voz ativa sobre quem gira o mercado e a sociedade de cima, do topo da pirâmide política.


Além dos pedidos de direito ao voto, as mulheres passaram a se conscientizar da importância da igualdade salarial, igualdade social e união contra as consequências do machismo. Dentro de cada tipo de ideologia feminista, pautas que toda mulher adepta ao movimento espera encontrar - independente da sua ramificação de ideologia e aplicação -, são temas como igualdade salarial, direito ao corpo livre, igualdade social entra mulheres de diferentes raças e etnias, e liberdade de escolha.


Louisa May Alcott viveu - e isso é muito importante de se pensar -, nos primeiros anos de discussão feminista real em solo estadunidense.


Cronologicamente falando, o movimento feminista em si - na sua primeira onda -, surgiu como ponto debate durante os últimos anos do século XIX, que foi mais ou menos a época em que Alcott faleceu. Quando escreveu “Mulherzinhas”, o movimento ainda não estava sendo foco de debate, mas as mulheres já começavam a se organizar e intelectualizar o suficiente para entender seus deveres e direitos dentro de uma sociedade. E isso pula diretamente para as irmãs March.


Todas as quatro filhas da família foram ensinadas a estudar e buscar conhecimento. Incentivadas ao hábito da leitura, instruídas ao senso crítico social e pessoal, e motivadas a dispor de seu tempo e suas tarefas com igualdade dentro de seu círculo pessoal. Mas ser motivada a pensar como uma faminista moderna viria a pensar, não impediu de casar e ser dona de casa.


O principal recado que “Mulherzinhas” deixa no inconsciente coletivo feminino é: feminismo não é uma ideia que faz com que todas as mulheres queiram trabalhar, abdicar do casamento e da maternidade e desfrutar das mesmas vantagens e direitos que os homens. O feminismo é sobre você poder decidir que quer se casar, ser mãe e dona de casa, enquanto sabe que, na hora que quiser, pode mudar de ideia e ter uma vida pessoal junto ou separada dessa ideia pré-estabelecida sobre as mulheres e o que é feminino.


A SECESSÃO DE ALCOTT


A família Alcott é toda nascida e criada na Pensilvânia, estado estadunidense que fica ao norte do país. Isso quer dizer que a família dispunha de pensamentos progressistas em seu tempo, como a busca pela liberdade imediata do trabalho escravo, a igualdade racial, a igualdade de gêneros e a independência política contra colônias e subserviência.


Durante a Guerra de Secessão, os estados do Sul buscavam pela divisão dos EUA como um único país, para dois países separados. E isso é um resumo bem simplista sobre a coisa… A ideia do Sul, naquele tempo, era lutar contra a presidência de Abraham Lincoln, que aderiu políticas imediatas para se livrar da escravidão em solo estadunidense.


Enquanto o Sul defendia que os pretos deveriam ser escravos e pediam pela separação do solo estadunidense, os estados do Norte buscavam libertar os escravos do Sul e queriam derrubar as ideias separatistas. Obviamente o Norte venceu, e mesmo que as ideias sulistas não tenham se extinguido completamente, a vitória dessa guerra civil permitiu a liberdade dos povos escravizados e deu espaço para que políticas públicas mais igualitárias fossem discutidas e adotadas.


E é aqui que entram as irmãs March. Isso porque, com pautas sociais crescendo e os pensamentos feministas começando a surgir e ganhar força ao lado de pautas raciais, as mulheres passavam a deixar de ser um estepe para os soldados e entravam com tudo no trabalho direto.


Apesar de Louisa May Alcott deixar claro que a guerra está acontecendo longe de sua casa no interior da Pensilvânia, as irmãs March participam da luta tanto quanto. Seja com Jo que se empenha em trabalhar e financiar as irmãs e aumentar o sustento da casa, ao lado da mãe, enquanto o pai luta na guerra, ou com Beth tomando as rédeas da vida doméstica enquanto a mãe se vê como principal provedora do lar.


As irmãs March começam sua própria busca de futuro e desempenham papéis importantes no círculo familiar durante esse tempo de incertezas. Exibindo, de forma muito real, a dinâmica feminina das mulheres que enfrentaram a Guerra de Secessão. Alcott foi cirúrgica.


PARA ONDE VAI O CLÁSSICO


“Mulherzinhas” é, sem discussão, um livro excessivamente massante. Ele causa ressaca literária e trilha caminhos muito distintos e intensos para o papel da mulher na sociedade. E se tornou um clássico por deixar isso claro.


O livro é sobre vidas femininas e futuros em construção. E é um destaque na obra de Louisa May Alcott, porque é um livro escrito para mulheres, que fala sobre mulheres, e que foi escrito por uma mulher.


Diferente do que imaginamos quando pensamos na autora, Alcott não foi uma escritora de uma obra só. Pelo contrário. Tal como Jo (e talvez por Jo ser inspirada nela mesma), a autora teve outros livros escritos e publicados. Entre eles, inclusive, “Homenzinhos”, que é um romance sobre os protegidos de Jo March.


A importância de “Mulherzinhas” vem do seu debate sobre a posição feminina na sociedade e como isso tem impacto direto na vida como um todo. Usado como prova de que o feminismo não é limitante, mas sim vantajoso e oportunista para todos os tipos de vidas femininas, a obra ganhou força no cenário feminino como um todo.


Para além do seu impacto como obra feminina e pré-feminista, o livro também se aplica como um clássico porque aquelas ideias continuam sendo sobre a existência feminina. Tudo explícito de um jeito intenso e realista.


Quando um livro é escrito, ele não é feito com o intuito de se tornar um clássico. Isso acontece gradualmente. Mas o principal fator que joga “Mulherzinhas” nesse cenário, é o detalhe de que o livro parece mesmo um clássico nas primeiras linhas. Ele foi pensado para tocar gerações inteiras de mulheres em busca de suas próprias metas de vida.


Personagens como as irmãs March podem ser vistas o tempo todo em outros contextos. Sejam similares ou distintos. Uma prova disso é o filme “O estranho que nós amamos”, de Sofia Coppola. Que apesar de diferente em roteiro, exibe protagonistas com temperamentos e buscas muito parecidas com as irmãs March - e até com a mãe March -, e no mesmo contexto histórico.


A obra foi repercutindo. Gradualmente ecoando em obras que não se conectam diretamente com essa história em específico.


♥ Olive Marie

Postagens mais visitadas deste blog

SRTA. AUSTEN: AS MULHERES POR TRÁS DE LENDAS

GALATEA DAS ESFERAS: A FÓRMULA FEMININA DO SUCESSO

AS DUAS FRIDAS: A ARTE SOBRE MULHERES