10 COISAS QUE EU ODEIO EM VOCÊ: PERSPECTIVAS FEMININAS

 


Dentro de todo o histórico do feminino na sociedade, passando por todas as décadas anteriores ao início do movimento feminista até sua explosão e aplicação no cotidiano, a existência da mulher nunca chegou de fato perto da liberdade real. A possessão masculina e social sobre nossos corpos sempre foi um processo problemático no nosso amadurecimento, e nem depois de mais velhas alcançamos a liberdade absoluta.


Acostumadas a sermos comercializadas de formas inimagináveis, o nosso intelecto também passou por processos de invisibilização e negociação. E depois de filmes adolescentes que nasceram nos anos 80 e que tiravam o feminino do papel de adorno silencioso para adorno que cede fácil ao processo masculino de posse, vontade e ordem, nós fomos sendo esquecidas ainda como carnes em um açougue.


Na década de 90 as coisas começaram a mudar e o protagonismo verdadeiramente feminino começou a surgir em cena. Inspirados em clássicos literários que centralizam a força feminina em protagonismos despadronizados para a época em que foram escritos, alguns desses livros - além de maravilhosos -, renderam bons clássicos jovens nos anos 90. E “10 Coisas que eu odeio em você” foi um desses clássicos que entrou na lista.


Explorando algumas das personalidades femininas mais díspares possíveis, o filme exibe uma grande variedade de observações e visões femininas, abraça muitas versões da mesma personalidade e explora a adolescência de um modo geral. E além de nos deixar de corações quentinhos pela delicadeza com que isso é feito, ainda nos apresentam obras clássicas da literatura que reforçam essa questão da igualdade de gêneros e da força e liberdade feminina sobre seu corpo e intelecto.


Hoje a gente disseca “10 Coisas que eu odeio em você”, uma das melhores adaptações da literatura clássica para o cinema moderno.


SHAKESPEARE DOS ANOS 90


Durante os anos, adaptar Shakespeare para o cinema foi se tornando um padrão convincente para todos os tipos de público. Em clássicos do cinema, com grandes nomes da Era de Ouro de Hollywood, e também temos adaptações não tão antigas que também fazem seu trabalho muito bem. Mas talvez uma das mais curiosas entre tantas adaptações tenha sido o filme de hoje.


Inspirado no clássico “A megera domada”, a história já começa apresentando curiosidades diretas ao autor original, como dar o nome da cidade natal de Shakespeare para as irmãs Kat e Bianca (Stratford) e fazer Patrick (Heath Ledger) se chamar Verona, como a cidade em que Romeu e Julieta moravam.


Na peça original, a história é a mesma: uma irmã só pode namorar se a mais velha o fizer. E, para conquistar o coração de Bianca e ter a permissão do pai para a relação, uma trama é feita nas sombras e um homem destemido é escolhido para receber recompensas por sacrificar seu tempo ao tentar conquistar Katherina.


Mas na adaptação de 1999, as roteiristas Karen McCullah e Kirsten Smith arriscaram além da visão de Shakespeare sobre o protagonismo feminino. Kat não é megera, não é irritada, não é doida. Kat é uma mulher que ousou ter vida própria, escolheu seus caminhos de acordo com o que te cabia melhor e foi julgada por isso. E como uma mulher determinada, aceitou as consequências e os julgamentos.


E enquanto Kat consome literatura feminista, luta por igualdade e protesta contra padrões sociais institucionalizados para oprimir o feminino, Bianca se prova o oposto. E para além da visão masculina que Shakespeare, em seu tempo, não seria jamais capaz de fazer: Bianca e Kat abrem precedentes para a liberdade de personalidade feminina.


O FEMININO NO ROTEIRO


Talvez você não saiba disso, mas as roteiristas responsáveis pelo filme são nomes grandes no mercado de filmes e peças com temas da força feminina sempre centralizada de uma forma adequada e repensada. Seus trabalhos também abraçam “Legalmente loira”, “Ela é o cara” e “A verdade nua e crua”. Todas recontando a visão feminina sobre uma sociedade machista e impaciente com os nossos direitos e igualdades.


Pensando assim, analisar “10 Coisas que eu odeio em você” toma um rumo diferente. O femino de Kat, que já é uma discussão à parte, não é o único a ser explorado na obra. Bianca também tem um protagonismo curioso. Protagonismo, inclusive, que passa minutos inteiros sendo debochado pela irmã.


Com uma personalidade mais disposta a diversão, focada em namoros e ansiosa por conhecer o mundo além do conceito retrógrado e fechado do pai, e da consciência libertária e feminista da irmã, Bianca merece igualdade em protagonismo? Sim. E por que não?


A ideia central do roteiro é deixar claro que não existe jeito certo de encarar a visão feminina na sociedade, e que Bianca não é tola e frívola como parece. Ela tem seus momentos iniciais de inocência fútil, mas com o tempo vamos notando que ela entende conceitos complexos sobre a existência, como a diferença entre amar e gostar, a obviedade de sinônimos (que o homem da trama não entende) e abraça a união feminina, mesmo que ao seu próprio modo. E diferente do que parece ao primeiro momento: Bianca não se redime ao final. Ela sempre foi daquele jeito, mas não é tão intensa quanto Kat e nem precisa. A delicadeza da feminilidade não é uma fraqueza, mas uma arma.


As outras personagens femininas também são um deleite para a compreensão social. Seja no papel da melhor amiga preta, que não está nada disposta a ser o chaveiro decorativo da amiga branca e rica; a leitora apaixonada que é feminista, mas entende que não precisa ser como a Kat para ser notada e ouvida; e até mesmo a orientadora já madura, que não escancara suas percepções sobre o mundo, mas produz conteúdo adulto focado no público feminino.


O DECORATIVO MASCULINO


Além do foco intenso e direcionado ao protagonismo feminino, que vinga livros e filmes clássicos que utilizam as mulheres de decorações para os homens, “10 Coisas que eu odeio em você” faz piada do masculino.


Também explorando várias personalidades masculinas, o filme centraliza a cena da apresentação da escola em cenários majoritariamente hostis para mulheres. Os amantes de café reproduzem uma cafeteria na escola, majoritariamente homens que seriam considerados hipsters. Os administradores são homens interessados em dinheiro e vidas elitistas, os fãs da cultura negra são brancos frustrados que usam drogas, os populares são atletas que adoram festas, os descolados são homens burros (com foco em Joey Donner) e assim segue. Nem Patrick escapa do padrão.


Como diversão, todos os homens que ganham foco na história sentem que estão sob controle das mulheres, mas não estão. Bianca usa Cameron para conquistar seu encontro com Joey, mas depois (quando Joey acha que ganhou o que queria), ela troca seu foco e escolhe Cameron, até quando ele mesmo duvidava disso. Patrick perde a pose de bad boy misterioso quando entende que Kat não vai ceder aos seus caprichos.


Até mesmo Michael, que se empenha em ajudar tanto Cameron quanto Patrick, se vê como objeto do feminino ao se encantar pela amiga de Kat. Como uma compensação pela vilania do patriarcado, os homens nesse roteiro são usados de decoração para mulheres que não precisam deles para nada. E em nenhum momento isso é dito explicitamente. Não precisa, o roteiro é subliminar e direto.


“10 Coisas que eu odeio em você” sobreviveu ao tempo muito bem, porque tem um roteiro moderno e ativo. O talento dos atores também conquista carisma… Mas a verdade do seu ótimo envelhecimento é que a obra reconta uma obra machista em uma visão feminista. Manter uma peça clássica de Shakespeare tirando seu contexto patriarcal é difícil, e foi por isso que deu tão certo e resistiu.


É intenso não saber o que fazer quando nos sentimos silenciadas, mas observar a existência de obras assim nos faz crer que é possível seguir em frente com coragem e com determinação. Afinal, nem mesmo o machismo observou que esse filme fala sobre liberação do pensamento feminino e homenageia o sagrado de sermos exatamente quem somos.


♥ Olive Marie

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