O QUARTO EM ARLES: AS TINTAS AMARELAS DE VAN GOGH

 



Você, obviamente, conhece Vincent Van Gogh. Ele é intocável, e inevitável. Existir no mundo após sua vida e não saber quem ele foi é quase impossível - e ao meu ver, bem problemático e um tanto criminoso.


Mas a realidade é que você, se teve pouco acesso à obra de Van Gogh durante a vida, provavelmente só conhece algumas de suas obras. Em especial, “A noite estrelada” ou “Os girassóis”. Ambas telas maravilhosas e apaixonantes. Ambas telas intensas. Mas nenhuma tão profunda quanto “O quarto de Arles”.


Van Gogh foi um pintor sem nenhum reconhecimento em vida, totalmente oculto e esquecido em sua busca pela arte. Seu único apreciador era seu irmão, Theo. E como um ótimo irmão, um querido melhor amigo e um exímio conhecedor e revendedor de arte: foi Theo a primeira pessoa a reconhecer nas obras de Van Gogh mais do que ocupação para uma mente inquieta.


“O quarto de Arles” é uma prova disso. Feito inspirado no quarto que o pintor alugou em uma pequena pensão na França, a pintura exibe algumas das principais características da doença que viria a levar Van Gogh ao suicídio: a esquizofrenia.


Dito isso, a proposta de hoje é estudar, cuidadosamente, essa obra tão delicada e intensa. Entramos hoje, na mente de Vincent Van Gogh, graças ao seu ponto de vista único.


ESTILO PRÓPRIO E OS DEBATES


Minha relação com a obra de Van Gogh começou no início da adolescência, quando passei a ter aulas de arte com uma profissional que tinha especialização em suas obras. Nossa primeira grande tarefa, valendo nota na matéria, era escolher uma obra de Van Gogh e escrever sobre ela com base no que descobrimos da sua biografia. Posteriormente, faríamos duas reproduções de outras duas telas, ligando as três no mesmo contexto.


Escolhi “Os girassóis” para pintar em tela cheia com giz pastel, e escolhi “Campo de trigo com corvos” para colorir em guache com a técnica do “olho mágico”. Mas para redigir sobre e ligar as outras duas, escolhi “O quarto em Arles”.


Essa é uma obra bem clássica de sua obra, quase tão reconhecida quanto as outras que citei. Mas curiosamente, uma das menos admiradas e pesquisadas. Isso porque, muito provavelmente, parece simplista demais para ser um Van Gogh.


Olhando pelo lado artístico e profissional da obra, encontramos referências de estudo de arte de pintores que já amamos, como Édouard Manet, por exemplo. Mas quando isolamos os trabalhos de Van Gogh e entendemos sua fragilidade e obsessão em dizer o que sentia por meio da arte, vemos além.


Essa é uma tela que, na minha humilde opinião, não segue padrões específicos de nenhum movimento artístico (vanguarda). Por outro lado, exibe uma versão curiosa de Van Gogh que quase não vemos: sua intimidade emocional.


Quando Vincent Van Gogh se mudou para Arles, ele queria se dedicar à pintura, e passava seus dias buscando belas paisagens e boas pessoas para usar de modelos. Seu quarto era só seu.


Ao pintar “O quarto em Arles”, ele escreveu ao irmão Theo contando sobre a tela. É possível, por esta carta, saber como a pintura é sem nem mesmo vê-la, de tão bem descrita que foi. Mas existe um debate sobre o que duas cadeiras fazem em um quarto de um homem só. O que fazem dois travesseiros na cama?


Mas eu não foco nisso como questionamento. Minha principal pergunta é: quem é a mulher no pequeno retrato pendurado na parede do quarto alugado de Arles que Van Gogh estava morando?


UMA ORELHA, UMA MULHER E UMA DOENÇA


Van Gogh sofria de esquizofrenia, e por ter vivido em um tempo onde a medicina era tão simplista, especialmente a medicina focada em saúde mental, passou a vida lutando contra suas perturbações psicológicas sem um tratamento adequado.


Houve um momento, durante aquelas aulas dobradinhas de arte durante a escola, em que minha professora contou sobre o incidente da orelha decepada. E se você não sabe do que estou falando: Van Gogh removeu sua orelha com uma lâmina de barbear e a deu de presente para uma mulher.


A maioria dos biógrafos dizem que era uma prostituta, mas há quem diga que era o seu grande amor. Até a possibilidade de ser uma prima eu já ouvi. A questão é: uma mulher recebeu essa orelha como um presente.


Esse é o momento da conversa em que você, muito provavelmente, deduz que vou falar sobre um amor romântico que deu errado. Que vou dizer que a cadeira e o travesseiro extra eram dessa mulher. Que vou dizer que seu retrato é aquele que repousa na parede ao lado do próprio quadro dele. Mas não vou.


Com as informações que temos hoje e com o conhecimento de que Van Gogh sofria de esquizofrenia, sabemos claramente que o incidente da orelha foi um colapso da sua condição. Também podemos imaginar que a entrega da orelha decepada para uma mulher, talvez tenha a ver com um episódio do mesmo tipo (ou até mesmo o mesmo episódio), em que talvez ele quisesse ser gentil. Mas não acho que os excessos em seu quarto eram por causa de sua condição mental.


Eu acho que os excessos eram para a sua condição mental.


Pessoas com esquizofrenia costumam ter um sintoma bem comum em seu quadro que, de forma simplista, pode ser chamado de vozes. Em resumo, essas pessoas costumam ouvir vozes em suas cabeças e creem que aquilo seja verdade ou que seja importante. Creem que aquela voz pertence a algo real. Pessoas com esquizofrenia também se automutilam, sofrem com falta de moderação, têm crises de delírio e perdem a memória recente com certa facilidade. Van Gogh sofria com tudo isso.


Sempre que penso em Van Gogh e sua obra, penso em “O quarto de Arles”. Em como essa foi a exposição óbvia da sua condição mental e pedido de ajuda. Van Gogh estava sozinho, morava sozinho; mas jamais estava sozinho.


É uma nova personalidade? Não. É como transsexualidade? Definitivamente não. É algo que precisa de controle intenso para que a pessoa não se veja sozinha dentro da própria cabeça. E diferente do Transtorno de Múltipla Personalidade, que é causado por traumas e pode ser tratada de forma direta, a esquizofrenia sofre com a questão óbvia: ninguém pode afirmar com clareza de onde vem.


Genética é uma das principais apostas na maioria dos casos, assim como químicas cerebrais alteradas. E quando vejo duas cadeiras, dois travesseiros e um quadro de mulher, penso no sentimento mais simples sobre isso: ele estava mostrando que nunca estava sozinho. A imagem da mulher é meramente ilustrativa.


COMER AMARELO PARA FICAR FELIZ


Pensando racionalmente, entendemos que Van Gogh poderia estar duplicando tudo naquele momento porque estava a espera de Paul Gauguin, único artista que gostou da ideia de Van Gogh de construir uma colônia de artistas. Mas ainda penso em Van Gogh só.


Diferente do que se pode imaginar, não imagino ele só porque o vejo como um pintor melancólico. Imagino ele só porque o reconheço como um artista muito único. E não acho que seja único por ter sofrido de uma doença psicológica dolorosa e incurável. Eu o vejo só, porque Van Gogh, melhor do que ninguém, pintou sobre a fragilidade do íntimo pessoal.


Nem tudo que é pessoal é íntimo, e nem tudo que é íntimo é pessoal. Mas ele fez as duas coisas se unirem e pintou sobre si de uma forma direta. Talvez, tanto quanto - ou até mais -, do que Frida Kahlo.


Existe uma história que diz que Van Gogh comeu tinta amarela, em determinado momento, para tentar ficar feliz. Bom, também dizem que ele pintou “O quarto de Arles” porque carecia de um lar, assim como dizem que a duplicidade de objetos seria uma forma de acalmar o coração de Theo, dizendo que não estava sozinho. Há quem diga que ele “endoidou” porque os componentes das tintas à óleo eram tão pesados que o intoxicaram gradualmente.


Não acho que Van Gogh comeu tinta amarela para ficar feliz. Acho que ele queria se matar e deixar de sentir as aflições da sua saúde mental. Também discordo da ideia de que as tintas o deixaram louco. Acho que elas o adoeceram fisicamente por causa da sua composição problemática da época, mas não seriam intensas o bastante para afetar sua mente. Posso refutar cada uma das desculpas que surgem para não assumir o óbvio: saúde mental é um problema muito mais sério do que uma condição física.


Para o físico, se dá um jeito. Tudo tem solução, exceto, é claro, a morte. Mas uma saúde mental em frangalhos e sem atenção, leva à morte. Justamente ao problema insolúvel.


“O quarto em Arles” é uma de suas obras que mais contém tinta amarela. Possivelmente, a sua refeição amarela inteira em busca da felicidade. Afinal, esse pequeno quarto inclinado e um tanto disforme, reflete aconchego. A tinta amarela, a felicidade implícita, talvez seja essa busca pelo descanso interno. Talvez, a busca pela paz dentro de sua própria cabeça.


Penso nisso com cuidado e chego a entender que, aquele pequeno cômodo em Arles, talvez não tenha nada a ver com uma versão fiel do seu quarto alugado. Pode ser apenas o quarto da sua cabeça, onde Van Gogh e sua doença vivem em paz.


♥ Olive Marie

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