CLEÓPATRA E FRANKENSTEIN: A OBVIEDADE DA ARTE

 




Escrever sobre “Cleópatra e Frankenstein” se tornou um caos no meu psicológico pessoal. E isso porque sei que muita gente ama essa história – inclusive, pessoas ao meu redor. Tenho consciência de que minha falecida amiga amaria… Mas, particularmente, achei ruim.


Mesmo tendo o apoio de algumas amizades sobre a história, ainda sinto o peso de estar criticando algo que tinha muito potencial verdadeiro. E criticar o que tem potencial real me deixa chateada, porque sinto que estou falhando com algo sobre mim mesma…


Porém, no caso desse livro, coisas ainda precisam sair da minha alma. Coisas que não disse na resenha (porque o limite de caracteres do Instagram não permite), coisas que me incomodam. E coisas que me deixam pensativa. Então o texto de hoje é sobre esse livro peculiar, capaz de tirar diversos sentimentos de um pensamento só: o meu.


CLEÓPATRAS ESCONDIDAS NOS CANTOS


Enquanto lia o livro, sentia que Cleo (a protagonista) tinha um verdadeiro potencial na sua arte. Ela é uma personagem inteligente e ácida, com um coração enorme, mas com facilidade em se tornar explosiva. Algo nela me disse que o Transtorno de Personalidade Borderline pode ser uma opção de diagnóstico. E isso torna tudo maravilhoso, de um jeito triste.


É péssimo ter esse transtorno, mas no contexto do livro, a ideia de uma resposta sobre os pontos de vista de Cleo virem unicamente desse traço de si mesma, faz todo sentido e dá profundidade à obra. Mas o ponto é que foi Frank quem a apelidou assim, de Cleópatra.


A Cleópatra, como figura histórica, é um marco na vida feminina como um todo. É possível encontrar programas infantis ressuscitando a figura dela, diversos documentários e livros inteiros explorando quem ela foi e seu impacto nos dias atuais. Cleópatra é uma mulher digna de ser lembrada, uma mulher que foi devastada pelo amor e que foi consumida pela vitória pessoal de comandar o Egito. E Cleo parece se esforçar para corresponder ao que Frank viu nela, para se encaixar nessa comparação específica de si mesma.


E ao mesmo tempo que Cleo se esforça para corresponder à expectativa de uma Cleópatra: misteriosa, inteligente, criativa e proativa; ela também ia ruindo como a sua comparação. Assim como Cleópatra, Cleo foi sendo consumida pelo amor, foi se marginalizando pela esperança de uma vida melhor e foi se sufocando com o fracasso óbvio que só crescia.


NEM TODO HOMEM, MAS SEMPRE UM FRANKENSTEIN


Frank é o oposto da esposa: é divertido, é inteligente de um jeito específico e não está se esforçando nem um pouco, sobre nada. Como todo homem branco, que desfruta de privilégios e que cresceu rápido e muito na vida, Frank é um estadunidense padrão. Ele desperta o melhor das pessoas ao seu redor, enquanto se engole despertando o pior em si mesmo e em seu relacionamento.


Claro, Frank não tem culpa pela queda psicológica de Cleo. Ele nem mesmo tem culpa pelas expectativas que ela cria sobre ele (porque somos responsáveis apenas por nós mesmos), mas Frank é mesmo um Frankenstein. Ele foi criado por retalhos emocionais, e vai sempre ser esse fragmento que tenta fingir não ser. E como todo homem, é ele que começa, gradativamente, a tomar as decisões burras primeiro.


O mais peculiar é que ele passa o livro todo insistindo que ele é assim mesmo, que nasceu assim, e que Cleo o conheceu assim: destrutivo. Se ele é autodestrutivo, ela precisa aceitá-lo como ele é, afinal, ele a aceita sendo autodestrutiva também… E em momento algum, os dois percebem que ser autodestrutivo não é algo para se orgulhar. E mesmo que fosse, não existe mérito em ser autodestrutivo em conjunto e transformar a relação em um caos completo.


E como pequenas bombas relógio, ambos vão detonando aos poucos, destruindo e devastando, até não sobrar nada de si mesmos. Mesmo porque, o que sobra se duas bombas estouram juntas? O que Frank e Cleo esperavam que aconteceria, se passam a história toda se retroalimentando de seu próprio comportamento tóxico?


A resposta parece bem clara antes mesmo do fim do livro… Eles esperavam glamour.


GERAÇÃO PERDIDA, WOODY ALLEN E VALORIZAÇÃO DA DOR


Nós conhecemos bem essa história… O lema parece ser o mesmo para grandes artistas: a dor gera boas histórias.


E longe de mim afirmar tal absurdo, afinal, estados depressivos, transtornos de personalidade e desequilíbrios psicológicos não são coisas a serem admiradas. Pessoas são feitas para serem admiradas, apesar de suas dores. Mas a massiva produção de obras de qualidade, vindas de pessoas em processos autodestrutivos ou em momentos de crise, criaram o imaginário comum de que isso é um impulsionador da arte com qualidade.


No pensamento coletivo, parece que concluímos coisas boas sobre arte ou artistas, baseado em quantos problemas emocionais tiveram… Amy Winehouse era uma ótima cantora, porque tinha depressão. Kurt Cobain fez história, porque era uma pessoa com tendências ao vício. Frida Kahlo era uma artista genial, porque sofreu dores incorrigíveis. Van Gogh era um artista incomparável, porque era excêntrico com base na sua depressão. E assim seguimos.


Mas e se trocarmos o “porque” por um “independente de”?


Amy Winehouse era uma ótima cantora, independente da sua depressão. Kurt Cobain fez história, independente da sua tendência ao vício. Frida Kahlo era uma artista genial, independente das dores incorrigíveis. Van Gogh era um artista incomparável, independente da sua excentricidade causada por sua depressão.


A cada vez que valorizamos uma arte baseando nossa opinião na dor de quem a criou, arrumamos desculpas válidas para enaltecermos e validarmos como positivos os pensamentos suicidas e as dores emocionais. Mas a depressão não pode ser uma justificativa para a boa arte.


Em todo o livro, tanto Cleo quanto Frank parecem se agarrar a uma ideia sufocante de que estão com permissão de serem irresponsáveis, problemáticos e autodestrutivos, porque tudo isso vai contribuir para a sua arte final. Inclusive, o fim da história nos diz isso, de certa forma. E na minha cabeça, a culpa completa é da Geração Perdida¹.


Obviamente não foi proposital, mas o efeito manada aconteceu mesmo assim. Ao observarmos as dores dos artistas da década de 1920, parece que concluímos uma única coisa: a arte vem da dor, e a ótima arte vem da aflição. Afinal, por que não pensar assim, quando observamos que todos aqueles artistas conquistaram sucesso em suas carreiras, apesar de suas vidas fragmentadas?


Woody Allen nos deu um exemplo disso em “Meia-noite em Paris”... A dor está sendo supervalorizada no ambiente artístico. E está assim há décadas (talvez até há séculos, e nós ainda não contabilizamos)...


Frank e Cleo buscam essa dor com suas ações, mesmo que involuntariamente, porque sua desculpa principal é a sua arte. Ele, a arte de viver bem. Ela, a arte de ser uma boa artista. O lema é que os fins justificam os meios, e a romantização da degradação artística se valoriza no pessoal. É angustiante.


Olive Marie ♥


¹Geração Perdida: geração que viveu a juventude durante a Primeira Guerra Mundial e que tentou se equilibrar nos anos entre guerras. O nome foi criado por Gertrude Stein e popularizado por Ernest Hemingway, e teve um grande grupo de artistas – em maioria estadunidenses –, que migrou para Paris durante a década de 1920, em busca de liberdade e boemia para criar. Entre os principais nomes, encontramos John dos Passos, F. Scott Fitzgerald, Zelda Fitzgerald, além da própria Gertrude Stein e de Ernest Hemingway – e até mesmo Pablo Picasso e Salvador Dalí podem ser classificados nesse termo, se pensarmos em toda uma geração artística para além dos escritores.

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