AS DUAS FRIDAS: A ARTE SOBRE MULHERES

 

a imagem mostra a pintura "As duas Fridas", de Frida Kahlo, sobre fundo se tela de palha.

Uma vez, há alguns anos, pouco antes da pandemia, saí com uma amiga da época da adolescência para ir ao teatro (não me lembro ao certo o que íamos ver), e ela disse que não gostava de Frida Kahlo. E, se você tem boa memória, vai se recordar que, ali entre 2018 e 2019, quando o governo do momento estava sendo apedrejado (e ainda era pouco), o feminismo começou a se unir e debater pautas mais importantes.


Todos começaram, enfim, a se enxergar como latinos e começamos a nos ver como mulheres de formas mais universais e unidas. E mesmo que tais conversas ainda não sejam o que poderiam ser, muito se evoluiu ali.


Quando ela me disse isso, com a imagem da Frida sendo vendida e revendida em todos os cantos, como um símbolo de grito de guerra feminino, eu a entendi. Não que ela não gostar de Frida Kahlo (isso eu ainda acho tenebroso), mas ela dizer que não entendia as obras dela.


Seria mesmo difícil, eu conclui naquele momento, alguém como ela reconhecer Frida Kahlo como um impacto pessoal. Especialmente porque ela é uma garota branca (com tudo que o branco mais branco pode oferecer, como o cabelo extremamente liso e loiro, e todos os privilégios que tal posição e aparência lhe proporcionam), de classe média (bem) alta, que cursava moda em uma das universidades mais caras de São Paulo, e que nunca tinha passado qualquer tipo de bullying na vida. Tal amiga, diga-se de passagem, era a garota padrão perfeita, que se via como “a garota diferente de todas as outras”, porque só andava com os meninos e fingia não ter interesse algum por eles.


Como alguém como ela entenderia Frida Kahlo?


A ARTE DA INCOMPREENSÃO


Ao ser convidada para visitar a França e expor suas obras lá, Frida Kahlo foi confundida com uma pintora surrealista. E, na época de 1920, ser considerada surrealista gerava sempre reações muito extremas sobre algo. Ou sua arte era ovacionada por ser o auge da moda vanguardista de seu tempo; ou sua arte era vista como lixo incompreensível e de baixa qualidade.


Frida Kahlo escolheu a segunda opção. E eternamente “ofendida” por ter sido incluída em um tipo de arte que ela não fazia, se afastou ainda mais do grande público e se permitiu sentir ainda mais. E isso aconteceu porque Frida Kahlo não pintava surrealismo, coisas “incompreensíveis” que precisam de tempo de absorção para a sonhada apreciação. Frida Kahlo, como ela mesma observou, pintava a realidade.


Pessoas com pouca experiência de vida, criadas em redomas perfeitas e colocadas em pedestais de discursos limitados, mesmo que progressistas, dificilmente olham para uma pintura de Kahlo e veem arte. Geralmente, essas pessoas, são as mesmas que não entendem arte de rua, arte de performance e pinturas de um plano só. Essas pessoas costumam ver arte tal qual um alemão na década de 1940: os clássicos são os melhores.


Longe de mim insinuar que tal amiga seja pró pensamentos fascistas. Sei que não é. Mas também soube, mais tarde naquele dia, que estávamos fadadas a envelhecer nossa amizade mal. Isso porque, apesar de eu gozar de muitos privilégios similares aos dela, aprendi muito nova certas coisas que ela jamais vai entender. E isso também não quer dizer que não poderíamos ser amigas, porque cada um tem uma experiência e tudo mais; mas seria uma amizade limitada ao vazio.


Passei anos da minha vida tentando agradar essa amiga, ser boa e leal com seus pontos, mas me dei conta, naquele momento, que ela nunca seria capaz de retribuir - mesmo que ela quisesse.


A arte de Frida Kahlo não é a de incompreensão, como o surrealismo. A arte de Frida Kahlo é, pelo contrário, a arte de compreensão direta e instantânea. Quando você vê algo dela, ou você sente ou não sente. E está tudo bem não sentir nada. Isso, por si só, já diz muito sobre você.


AS DUAS FRIDAS


Pintado em 1939, a obra em si é simples de entender. Simples demais, até, se você tiver uma visão clara sobre a vida pessoal da artista. E mesmo se não tiver, também não vai sofrer tentando decifrar…


Quando olhada atentamente, entendemos o peso da pintura na vida de Frida. E podemos entender o quanto isso diz sobre si, assim como também podemos compreender a causa de essa ser uma de suas obras mais famosas. Ela se duplica propositalmente, durante seu período de divórcio com Diego Rivera, e se permite encontrar de frente ambas as Fridas que vivem dentro de si. Por isso ambas olham diretamente para o espectador. E por isso essa parece ser uma obra que nos lê a alma.


A Frida de branco, mais europeia, se permite o recato na pose, enquanto a Frida latina se deixa sentar de pernas abertas e prestigiar seu país por meio das roupas. Frida Kahlo, vale lembrar, é um sinônimo de moda e de força na indústria fashionista.


Enquanto a Frida de branco corta a veia do seu coração, expõe os nervos e a evasão de sangue de suas raízes brancas (vindas de família paterna), a outra Frida mantém seu coração e seu sangue quente, completamente viva. A foto do relicário em sua mão, exibe um Diego criança, novo demais para ferir seu aflorar feminino e destruir seu coração. A Frida latina, mexicana, vive. A Frida casta e europeia, morre. É fácil!


Frida Kahlo é conhecida por seus autorretratos, mas esse se supera. Isso porque tem muito mais do seu racional e emocional se ligando e selando as pazes. Essa é uma obra sobre sentir demais, entender o destino já traçado, e se permitir pacificar o peito em prol de um novo caminho.


QUANDO PENSAMOS EM FRIDA KAHLO E SEUS RETRATOS


É óbvio que, quando pensamos na obra de Frida, entendemos que ela se pintava porque sofria demais. Aquela amiga, ouso dizer, talvez não via força na obra de Frida Kahlo, porque deduzia que pintar autorretratos em excesso tem a ver com egocentrismo ou algo assim. Em sua ignorância - tanto sobre a vida de Frida quanto sobre a sua própria -, ela era incapaz de entender que Frida pintava mulheres.


Por mais que fosse seu rosto ali, sua história, seu ego se sobressaindo pois si mesma era tudo que conhecia de fato, ela estava pintando mulheres. Estava contando histórias e deixando um legado óbvio: nenhuma experiência é exclusiva. Muito menos as dolorosas. Muito menos as dolorosas e femininas.


Frida se pintou abortando, sangrando, vaidosa, animalesca, casada… Podemos não ter sofrido acidentes de bonde, mas nossas colunas não estão para sempre destruídas? Seja por trabalhos domésticos braçais e inevitáveis, por gestações pesadas e solitárias, por horas demais sentadas ou em pés (tentando sustentar a nós e aos nossos)?


Não choramos? Não casamos e fracassamos no amor? Não rezamos para voltar no tempo para que nossos parceiros tenham a chance de não se corromper como víboras? Não esperamos e oramos por mais? Não somos animalescas e animalizadas?


O que, eu lhe pergunto, Frida Kahlo pintou que era exclusividade dela? Apenas seu rosto, insisto em dizer.


Os retratos de Frida Kahlo são uma brutal realidade sobre a existência feminina. E uma mulher que não entende isso, fica difícil de ser defendida. Se uma mulher não entende Kahlo, quem iria entender?


♥ Olive Marie

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