RAINHAS DA NOITE: REFLEXOS POLÍTICOS QUE FINGIMOS NÃO VER
Enquanto lia os últimos capítulos de “Rainhas da noite”, conversei com uma nova conhecida sobre o submundo em que viveram. Falamos, superficialmente, da falta de evolução e da dor de se ser letra T na grande sílaba da diversidade.
Nada mudou. E dificilmente irá mudar. Não haverá pedido de perdão da sociedade pelo crime da marginalização de vidas. Não haverá arrependimento por terem inundado as mídias com descaso pelo sangue que se contaminava na AIDS — como se fosse uma penalização genética restrita aos membros das comunidades LGBTQIAP+.
Ainda assim, “Rainhas da noite” revela uma versão curiosa dos dias de hoje. Um relato quase em tempo real de fatos que se repetem, que se acumulam e aglomeram ao redor de sociedades decadentes do Brasil. “Rainhas da noite” é política, mesmo que seja jornalismo.
BLÁBLÁBLÁ, NEGÃO E DE MAYO
Enquanto discorre sobre a história de Jacqueline Blábláblá, Chico Felitti nos conta uma história de superação. Entre muitas aspas, Jacqueline veio de origem pobre, se virou (no sentido figurado e no sentido de gíria) para conquistar algo, e subiu. No topo, usufruiu de poderes exclusivos de certas natas e contatos.
Cristiane Jordan foi sempre abolida. Recusada e rechaçada pela própria família, humilhada nas ruas e pagante de um preço alto demais por lutar por seus direitos como trans. Conhecida como Cris Negão, se ajustou aos esquemas possíveis da sobrevivência do submundo em que foi abandonada, e conquistou respeito.
Andréa de Mayo viveu o melhor e o pior dos dois mundos. Era agente das ruas tão intensa quanto Jordan e também usufruía do poder e da riqueza que Jacqueline teve em tempos de outrora. Sua memória foi mais respeitada que Jordan e sua fortuna mais emblemática que a de Welch (apelidada de Blábláblá).
No entanto, morreram as três sozinhas. Talvez recompensada pelas boas ações — mesmo que poucas —, de Mayo teve uma morte menos dolorosa do que Jordan e Blábláblá. Ainda assim, as três são um reflexo cruel de um mundo desigual, feito para cisgêneros.
Mas as três também eram corpos políticos!
PARA QUEM SE CORRE NA MADRUGADA
Com o poder influente de Blábláblá como cafetina de luxo, entendemos que corpos políticos também são aqueles que usam seus corpos para atrair poder. Jacqueline tinha uma postura fina, elegante e usava seu corpo — e de suas filhas — de armas para salvar as dores que as madrugadas lhe reservavam.
De Mayo usava sua força midiática. Era imensa em comunicação, usou de seu impacto na mídia para conquistar espaço e lutar abertamente pelos direitos T. Foi um ícone de resistência e precisa continuar sendo vista como tal. Seu corpo político era sua voz no meio artístico, e fez disso sua chance de manter suas madrugadas ilesas. Mesmo que em casa fosse vítima.
O corpo de Cristiane, por outro lado, era político de outra forma. Era mais marginalizado, por ser preta e assumidamente trans. Era mais violento também, justamente por ser mais humilhado por uma sociedade que faz política com os “bons costumes”, nascidos em tempos ditatoriais e escravocratas. O corpo político de Jordan foi o mais penalizado em morte, assim como em vida.
E quem faz política com isso? Aparentemente, nomes que pouco ou nada fizeram pelas políticas públicas de direitos T, mas que usufruem de forma arrogante do que foi trilhado por mulheres como elas. A política de hoje faz paradas e se esquece de como o direito foi conquistado, de quantos corpos foram drenados da vida.
Mas a política está bem feita por hora… Temos a falsa sensação de evolução e melhoria quando falamos da democracia dessas vivências, se comparadas com o que já foram.
UM DESABAFO
Venho de família turca. A herança genética que me corre nas veias, em 50%, partiu da Europa sabe-se lá por qual perseguição da vez que estava rolando. Ancorado em Minas Gerais, o sangue familiar se tornou ainda mais tradicional e exigente.
Ainda assim, corre nas minhas veias o sangue de um homem político. Não um pai, mas um tio. O único que reconheço como meu sangue dentro de traumas familiares tão extensos…
O sangue político desse homem começa com um jovem transgressor, membro de revoluções contra a Ditadura Militar, que por um milagre escapou das varreduras policiais daquele tempo. O jovem futuro médico, que abriu mão do bisturi por um bacharelado em exatas, porque ver a morte lhe causava mal. De jovem revolto, o corpo bissexual se contaminou e se partiu, levado por complicações da AIDS, em 1996.
Resumidamente — e assumindo a responsabilidade emocional que mencionar isso abertamente me dá —, esse corpo marginalizado por um governo militar e por uma sociedade preconceituosa, encontrou acalento em casa. Foi no seio da família tradicional mineira, com origens turcas, que se viu cuidado até o último dia de vida. Fraco, sem falar e ferido, a imagem cadavérica do que era para ser o melhor tio que uma criança poderia pedir, teve os braços dos irmãos homens cisgêneros e brutalizados ao seu redor até sua morte.
Mas ler “Rainhas da noite” traz esse gosto amargo… Pessoas que resistiram à repressão da Ditadura Militar, mas morreram nas ruas e pelas ruas, teriam tido finais diferentes se não fossem corpos marginais? Teriam tido chances se fossem nos dias de hoje? O efeito político brasileiro dos últimos anos me fazem saber — com pesar — de que a história seria a mesma.
Mortas a tiros, Blábláblá e Jordan, ainda estariam jazendo nas ruas em que foram emboscadas. De Mayo teria o atendimento duvidoso que teve. Seria a mesma obra, se essas lendas paulistanas tivessem vivido em 2010.
Ainda estamos aqui, como sociedade, fingindo não ver esses reflexos políticos toscos, pecaminosos e asquerosos. Somos um reflexo doente de 1960, 1970, 1980 e 1990. E seguiremos sendo! Não há evolução no que nem tenta se revoltar.
Olive Marie ♥