HILDA HILST: O ENREDO DA VELHA PUTA
Sempre que penso em Hilda Hilst, penso em como a poesia feminina vale menos do que a masculina. E penso no quão irônico isso soa. Afinal, poesia não é coisa de mulher?!
Mas, parando para pensar com mais cuidado, me questiono o quão normal é ridicularizar a obra feminina de um modo geral, e o quanto o descaso com a poesia feminina ultrapassa o limite da piada de mal gosto. Em especial, porque temos a obra grotesca de Bukowski – por exemplo – sendo endeusada por gente que nem entende de literatura.
Eu até gosto de Bukowski, na verdade. De certa forma, sua decadência machista é o exemplo do que não se deve ser, nem da forma como se deve pensar. E mesmo sendo menos do que poderia, ele ainda continua sendo um eco de valorização literária masculina.
Mas temos o ponto de que Bukowski não era poeta. No entanto, Leminski era. E por mais que eu ame Paulo Leminski (e eu o amo muito), sua poesia também tem lá suas decadências. Ainda assim, Hilst precisou lutar mais do que ele por espaço no cenário literário. E só por ser mulher.
E a pior parte é que ela nem foi a única…
LISPECTOR E SUA PRÓPRIA VERSÃO
Depois de já ter uma carreira sólida na literatura, Clarice Lispector recebeu, de seu editor, a encomenda de três contos. E em um fim de semana ela os escreveu.
Mais do que isso, Lispector escreveu mais do que três contos – e alguns textos no sentido de ensaio –, que unidos formaram a obra “A Via Crúcis do corpo”. Tudo brotando dela como um cuspe de humanidade que ultrapassava a sua genialidade literária.
Li o livro no início da adolescência e, curiosamente, se tornou um dos meus preferidos. Lispector passou a ser uma recorrente na minha paixão literária, e é curioso que isso tenha acontecido. E é curioso porque meu primeiro contato com ela foi justamente sua obra mais “profana”.
Quando Alice Ruiz disse que há diferença entre a escrita masculina e a feminina, porque a vida feminina se agarrou por muito tempo ao subjetivo do mundo, pensei automaticamente em Clarice Lispector e Hilda Hilst.
PUTAS PROFANAS DA LITERATURA
Quando homens escreviam coisas consideradas obscenas e profanas, completamente à margem da sociedade, eram chamados de escritores malditos. Quando mulheres faziam isso, eram simplesmente chamadas de putas.
“Escrever não deve ser o alimento da vida feminina”, já disse um crítico para Charlotte Brontë quando “Jane Eyre” foi lançado. E Charlotte Brontë não era nem mesmo alguém que escrevia sobre o sombrio da vida…
No entanto, escrever sobre o envelhecer no corpo feminino, sobre sexo e sobre recantos sombrios da mente era algo proibido para mulheres. Era – e ainda é – considerado tão grotesco, que a própria Clarice Lispector chegou a ponto de se desculpar antecipadamente em seu livro “A Via Crúcis do corpo”.
“Já pedi licença a meu filho, disse-lhe que não lesse meu livro. [...]”
E enquanto vemos uma das maiores autoras brasileiras tendo que justificar o que escrevia em nome da própria maternidade, temos Hilst debochando da competência masculina na literatura e escrevendo temas marginalizados pela diversão da provocação.
SEM DESCULPAS POR SER MULHER
A principal diversão evidente na obra de Hilst, talvez, seja sua apreciação pelo improvável de seu gênero. Afinal, diferente de outras autoras brasileiras até então, ela não estava interessada em escrever romances sobre a condição feminina. Hilst escrevia poesia de qualidade.
Já perto do fim da sua vida, Hilda Hilst se indignou ainda mais com a facilidade com que a literatura de baixa qualidade ganhava força entre as massas, e por provocação, começou a escrever obras que obviamente seriam repudiadas pela sociedade. Piada decadente ou não, Hilda Hilst passou a ser mais reconhecida por essas obras profanas do que por seus trabalhos de poeta.
Em contramão, o livro “obsceno” de Clarice Lispector nem chega perto de ser o seu mais famoso. O que torna curioso que ambas sejam maravilhosas como autoras, mas por razões completamente distintas.
Com o enredo da liberdade sexual surgindo para ambas já em uma idade em que a mulher, perante a sociedade já não está autorizada a pensar em romance – muito menos em sexo –, ambas alcançaram o poder de serem vistas como putas profanas. Uma sempre será lembrada assim (infelizmente) e a outra não (felizmente). E, talvez, esse seja o principal ponto que as diferencia entre si como autoras, mas também é o principal que as une perante a literatura.
Olive Marie ♥