A OUTRA FILHA: O LUTO DE IRMÃ DESCONHECIDA


 



Conhecida por escrever crônicas de sua vida pessoal, a maioria como desabafos de suas experiências emocionais, Annie Ernaux é um marco de realidade na literatura francesa, que quase sempre é romanceada e realista de um jeito peculiar.


Annie Ernaux não é peculiar. Pelo contrário: ela é prática. Simplista até. Escrever com alma, como ela escreve, chega a acalentar a alma até de quem não a conhece e não compartilha com ela suas experiências. Mas teve um livro dela que me chamou mais a atenção do que os outros: “A outra filha”.


Escrito sobre a perspectiva de uma criança que cresceu sem falar com os pais sobre a irmã falecida antes de seu nascimento, a obra se debruça sobre a dor calada de descobrir sobre a irmã de uma forma corriqueira e não calculada, e sobre o trauma de viver na sombra do desconhecido, sempre na dúvida se sua existência é válida.


A EXPERIÊNCIA COMPARTILHADA


Me interessei mais por esse livro do que pelos seus outros por uma razão bem óbvia: sei qual é a sensação. Claramente, não tanto ao pé da letra como ela, mas tenho minha cota de incertezas sobre mim mesma por causa de uma criança falecida antes de mim.


Quando terminei a leitura, até compartilhei com a minha mãe o peso emocional excessivo dessa experiência, e mesmo sabendo que não faz sentido na cabeça dela, sei o que estou dizendo. E sei porque cresci com o trauma imensurável de uma irmã perdida.


É díficil nomear esse tipo de luto, mas sei que é um luto extenso. Tem o luto de não ter tido uma irmã mais velha. O luto de ser uma irmã mais nova, que poderia ter uma referência feminina fraternal mas não tem. O luto pelo próprio egoísmo em não querer esse irmã. E também o luto pela culpa do egoísmo; e o luto pela vontade irrefreável de encaixar essa criança em nossas próprias memórias familiares. A dor de não conhecer esse rosto – ou não colocá-lo com adolescente e adulto, no caso de Annie Ernaux – também rodeia a memória falsa dessa morte que não presenciamos.


Diferente de Ernaux, eu sempre soube da minha irmã falecida, mas nunca a mencionei diretamente para as pessoas. Ouso dizer que são poucas as minhas amizades que sabem de sua existência. Porque, ao mesmo tempo que a temo como sombra pairando sobre mim, a reverencio pela dor do luto pessoal da minha mãe, e parece traição mencioná-la sem autorização… Afinal, a perda de uma criança diz mais sobre a mãe do bebê do que sobre os outros envolvidos na história.


Mas Ernaux está certa: a sombra dessa criança não some. Se intensifica sendo do mesmo gênero. E se enraíza de formas nefastas na alma, dependendo de como se descobre sobre sua existência.


A SOMBRA QUE NÃO REFRESCA


Nunca fui poupada da existência da minha irmã, diferente de Ernaux. Enquanto ela jamais soube de forma direta de seus pais sobre essa criança falecida e enterrada na dor de um luto intenso de pais complicados, eu sempre compartilhei de uma memória roubada. Desde muito nova, antes mesmo de me entender como pessoa, a sombra da minha irmã cobriu minha existência.


No entendo, assim como Ernaux, passei – e ainda passo – pela experiência dolorosa de calcular meus passos perante minha família. E especialmente perante minha mãe. Porque tudo se calcula: será que a criança perdida teria sido mais gentil do que eu? Será que ela merecia mais do que eu a chance de estar viva? E, se sim, devo me preocupar com a minha própria história? Será que as coisas que tive eram minhas, ou devo me sentir uma ladra e uma intrusa por estar tendo a chance de nascer, crescer e envelhecer enquanto ela partiu? Se partiu porque assim deveria ser, o que isso me torna? E que lição ela tinha que ensinar? E será que eu sou capaz de ter algo a mais para ensinar, ou sou apenas uma memória afetiva do que minha mãe queria ter antes de mim, mas não teve?


Esse é o tipo de sombra emocional que jamais se apieda e se acalma, porque ela cresce e nos sufoca, mesmo que de forma discreta e quase inconsciente. Mas sempre presente, é importante ressaltar.


Ernaux entra nesse jogo cíclico de tentar se entender para além da memória não exposta de seus pais, e descobre sobre a irmã pelas pessoas ao redor. Familiares e vizinhos que sabiam da história, e que, diferente de seus pais, não tentaram esconder dela a verdade dos fatos. Essas pessoas nem mesmo sabiam que esse era um segredo familiar…


Os pais fingiam que ela não sabia de nada, e ela se poupava de questionar por medo das respostas, pela insegurança e pela incerteza. Aflita sobre o que deveria sentir sobre, ao mesmo tempo que escolhia repudiar a memória da irmã. E que sabia decisão… Queria ser capaz de contar para ela que, crescer sabendo abertamente, gera constrangimentos ainda maiores.


O LUTO FINAL


É impossível soltar spoiler sobre 64 páginas que são abertamente reveladas, pela própria autora, já no primeiro parágrafo… Ernaux visita, no cemitério, a irmã que jamais conheceu, o pai e a mãe. E com a mãe a relação é tensa até em luto. Porque apesar de ser a última da família a sobreviver ao tempo de validade da própria vida, ela ainda se pega ferida pelo luto de uma relação complexa com uma mãe afetuosa e impetuosa.


Novamente, que relação experimental compartilhada…


Quando a terapia insiste em culpar nossos pais por sermos como somos e por nossos desgastes afetivos, erram e acertam ao mesmo tempo, em um eterno pêndulo da justiça que jamais vai pender para um lado só. Seres humanos são complexos e a ciência comportamental e psicológica descobriu isso há muito tempo. Somos sempre o reflexo e a sombra de alguém.


E, dependendo da sua relação familiar, o luto da morte de seu pai ou de sua mãe será um fardo eterno, até a sua própria aniquilação. Sinceramente? A coisa só se afunila ainda mais, a cada dia que se passa.


Só consigo me perguntar se, um dia, seremos capazes de se desfazer desse luto que não é nosso, mas diagnostica nossas vidas com impactos fortes e permanentes… A resposta ainda parece diferente e causa estremecimento emocional. Mas seguimos em frente, porque o luto precisa ser vivido, independente da escala dele.


Olive Marie ♥