EM ALGUM LUGAR NAS ESTRELAS: O IMAGINÁRIO E O REAL

 



Crescer e amadurecer antes da hora adequada são um problema no mundo real, e também são um problema no mundo ficcional. Porque nós, seres humanos de um modo geral, nunca estamos prontos para amadurecer e lidar com coisas que a vida diz que deveríamos.


Destino ou não, o fato é que isso chega para a maioria de nós, e envelhecer traz esse processo natural de entender o passado e driblar as dores do presente da melhor maneira, para que nosso futuro seja construído por coisas e atitudes das quais nos orgulhamos. E essa é a verdadeira sinopse por trás de “Em algum lugar nas estrelas”.


Mas na sinopse escolhida pela edição do livro, Jack é um menino obrigado a lidar com o luto da perda da mãe, e agora está sendo forçado a ir estudar em um colégio militar, porque seu pai não sabe muito bem o que fazer com ele. E isso não quer dizer que ele seja um filho problema, mas a verdade é que seu próprio pai não está sabendo lidar com a situação também e ele não é lá muito bom com crianças.


No novo colégio, Jack faz amizade com Early, um menino fora da caixa de comportamento padrão de um lugar como aquele. Early é sensível e dedicado, com traços de personalidade e temperamento completamente diferentes dos de seus colegas de escola. E é isso mesmo que fascina tanto Jack, que também não parece se encaixar tão bem ali.


Com uma versão muito curiosa sobre o que aconteceu com o número Pi - aquele mesmo da matemática -, misturando piratas, aventuras e constelações, Early leva Jack em uma aventura completamente inimaginável e nova, e isso muda todo o rumo da vida dos dois. E de algumas pessoas ao redor também.


O IMAGINÁRIO


Com o tipo de história perfeita, que imaginamos Hayao Miyazaki transformando em filme, “Em algum lugar nas estrelas” faz do imaginário uma obra mágica para além do esperado. Usando muitas das aventuras de Early em metáforas óbvias para uma realidade que dói, mas que pode ser mudada.


A criação fantástica que ele tem e compartilha com Jack ultrapassa o esperado. Até mesmo para obras infantis e fantasiosas. Isso porque a ideia de preservação do imaginário é usada de forma delicada e prestativa. Tem muita coisa ali que tem uma poesia quase intocável. E essa é a real magia por trás da história.


Usar metáforas criativas para falar de morte, dor, traumas e luto é uma tática antiga, especialmente na literatura infantil. Mas esse livro ultrapassa alguns desses limites pré-definidos e cria um novo padrão. Para além das metáforas, “Em algum lugar nas estrelas” realmente prioriza a vaidade e a força da criatividade infantil para lidar com dores abstratas demais para serem verbalizadas ou racionalizadas.


O imaginário também é usado no livro para debater sobre questões mais leves, e a solidão é explicada de forma completamente direta, sem rodeios ou criatividade. A meta de Early, no fim das contas, não era deixar de ficar sozinho, mas encontrar espaço para afastar a solidão. E por meio da aventura mais doida e infantil possível, Jack também entende que crescer tem um preço, mas ele ainda não tem as moedas de troca necessárias para essa barganha.


O REALISMO


Por trás da força magnética que a obra apresenta com o imaginário, o realismo óbvio também está presente. E é necessário. Porque a principal lição do livro é que o imaginário, apesar de crucial para se ter uma vida plena, não é capaz de ofuscar o real de tudo que passamos.


Criar versões mais fáceis de lidar, encontrar métodos e teorias, e reorganizar a cabeça para lidar com coisas que parecem impossíveis, não são o bastante para qualquer situação. Muitas vezes só precisamos enfrentar o que temos diante de nós. E o realismo brutal de debater sobre o luto está ali.


Entender o realismo de “Em algum lugar nas estrelas” exige que se debata sobre até onde o livro é mesmo infantil e onde ele pode ser visto como uma arma de superação e compreensão das pequenas e das grandes perdas. Apesar de criativo, o livro não deixa de ser muito direto sobre a linha tênue entre o sentir e o lidar. Ambas questões importantes sobre o existir humano.


O realismo inabalável transforma o leitor em um observador curioso de duas faces da mesma moeda: a facilidade de desassociar para encontrar respostas adequadas ao luto e a exigência social de tentar aceitar e seguir em frente. Afinal, seja como for, não somos capazes de ressuscitar os mortos. E a importância de entender que não tem jeito certo de lidar com a perda, também é parte do processo de aceitação da narrativa.


O famoso “tá tudo bem” é a chave de entendimento da escrita aqui, e também a grande missão da autora. Pensando em uma perspectiva mais prática, o livro serve como instrumento didático para mostrar para as crianças como aplicar o fantasioso em cima de dores reais, e em como transformar isso em arte de forma lúdica e especial.


A PERSPECTIVA DE PERSONALIDADES


O que difere Early e Jack? Apenas os nomes se diferem, e as formas únicas de lidar com a perda; afinal, Early também está vivendo seu próprio processo de luto e de entendimento. E enquanto compartilham essas experiências aventureiras, os dois precisam aceitar os processos do respectivo companheiro de viagem.


Jack precisa, lentamente, entender que Early tem seu próprio jeito de lidar com a morte do irmão, enquanto Early tenta aceitar que Jack está tentando ser um adulto sobre ter perdido a mãe. E essa mistura emocional da razão e do imaginário nos guia por um lugar muito além do esperado. Não é mais sobre o real e o surreal. A linha é cortada com essa emenda de personalidades e suas respectivas perspectivas.


Estar de luto pode ser intenso, independente de como você encara esse processo. Mas e quando você está tentando entender seu luto enquanto lida com o do outro? “Em algum lugar nas estrelas” te responde isso com delicadeza: você espera.


Aplicar sua própria visão sobre a perda não quer dizer que a forma de sentir e de ressentir a dor do alheio esteja errada, só porque não é a sua. Parece inocente, mas a verdade por trás disso é avassaladora. É brutal entender que os tais processos são mais reais do que parecem, e que precisam dessa atenção constante. Porque, seja um luto compartilhado ou único, o perder nos obriga a amadurecer um pouco mais, mesmo que já sejamos velhos e vividos como se espera. Sentir dor, física ou emocional, é sempre um processar gradual da própria história.


♥ Olive Marie

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