O FABULOSO DESTINO DE AMÉLIE POULAIN: AS SUTILEZAS DO DIA

 



A vida parece tediosa e rotineira, sem muito de belo a se observar, exceto quando não estamos nos nossos cenários habituais. A verdade por trás do olhar seletivo e curioso que adquirimos ao viajar ou ao descobrir um novo recanto, é que estamos fadados a entender que existem diferentes processos que precisamos viver em autômato.


Andar de bicicleta, nadar, dirigir, caminhar e dançar são coisas que aprendemos e jamais esquecemos. É como ler: quando aprendemos a ler, nunca mais somos capazes de não ler algo. Entrar na rotina é o que o nosso cérebro faz para que nossa concentração possa ser destinada a várias coisas ao mesmo tempo. Eis a resposta de porque um motorista novato não é capaz de ouvir música enquanto dirige, mas um experiente é. Divisão de tarefas baseadas na nossa capacidade de concentração e rotina.


Mas no roteiro da vida de Amélie Poulain as coisas são diferentes disso. Amélie mantém um dom deveras associado à fase da infância: Amélie observa e abraça todos os pequenos detalhes da sua rotina. Ela observa tudo e todos, absorve suas personalidades e ideias, e aplica essas observações delicadas na sua própria rotina. Mas não de uma forma maldosa, invejosa ou movida pela disputa.


Amélie parece a única pessoa saudável dentre todas as pessoas que conhece e convive. Ela não está fisicamente debilitada como sua chefe com deficiência, seu pai idoso ou seu vizinho com ossos de vidro. Ela também não é hipocondríaca, depressiva ou paranoica. Sua mente, apesar de parecer destoar da visão das demais, está tão sã quanto seu corpo, e sua grande magia é observar as pequenas sutilezas do dia - seja o seu ou o alheio -, e seguir a própria vida com o máximo de paz possível.


Entre tudo que poderia entender como sua missão pessoal, Amélie descobriu seu grande dom em ajudar as pessoas. Por ter um senso de observação apurado, ela é capaz de trazer bons sentimentos aos entes ao seu redor, lhes presentear exatamente com tudo aquilo que eles mais apreciam e necessitam, e ainda encontra espaço para seguir seu próprio rumo.


O FAZER O BEM SEM OLHAR A QUEM


De um ponto de vista mais amargurado e cético, Amélie Poulain pode parecer uma grande enxerida. Afinal, andar por aí fazendo o bem assim, ajudando e se “metendo” em assuntos que não são dela pode lhe render um ar pretensioso.


Um de seus planos mirabolantes, inclusive, chega a falhar miseravelmente e traz mais doenças imaginárias para a colega de trabalho e ainda mantém o cliente paranoico em um ciclo vicioso arriscado. Mas de um modo geral, suas ações são em busca de curar e apaziguar a dor dos outros. Isso porque ela tem certeza de que não tem muito o que fazer por si mesma.


Na realidade, a senhorita Poulain não está olhando para quem tem feito as coisas. Ela só quer aliviar um pouco todas aquelas dores que vê e sente que ferem seus entes queridos. Sua missão não é ser a Madre Teresa - apesar da alusão à ela no filme -, porque as aventuras que Amélie se prontifica a criar para seus amigos e família são bem mais materiais e carnais do que se espera de uma santa.


Mesmo assim, a lição principal da história é que fazer o bem não precisa ser um sacrifício da sua própria felicidade. São nas pequenas coisas, naqueles favores que ninguém nota que estamos fazendo, que reside a verdadeira profundidade do ditado.


A delicadeza de observar os dias, as rotinas, e cooperar na medida do possível é um passo curioso no mundo em que vivemos. A hipervalorização da exposição óbvia do pequeno bem é a real motivação das boas ações de grande parte das pessoas. Mas Amélie quebra esse padrão, e nem mesmo aprecia a ideia de levar o crédito por estar fazendo essas coisas. Ser descoberta pelo vizinho afetuoso chega até a ser uma surpresa para ela.


O DOM DE POULAIN


Já tendo levantado debates no ambiente psiquiátrico, a personalidade de Amélie Poulain é um tanto cuidadosa e curiosa. Sua maior virtude é se comover e se moldar ao necessário do outro, mesmo que também valorize e priorize sua própria vida e experiências. Alguns traços de personalidade podem até ser confundidos com traços leves de autismo, segundo a opinião de alguns, mas esse não parece o caso.


Há alguns anos uma nova questão de personalidade surgiu na boca da ciência e do público, e talvez você já deva ter ouvido falar: o PAS. A sigla faz referência ao termo Pessoas Altamente Sensíveis, que se enquadram em diagnósticos curiosos dentro de consultórios, mas que não sofrem de um problema clínico.


As PAS são indivíduos sem nenhum sintoma neuro atípico, mas apresentam sintomas parecidos com autismo, como o incômodo por sons muito altos, a sensibilidade (seja tópica ou psicológica) por tecidos e objetos rotineiros que entram em atrito com a pele de forma (comumente) leve e a grande capacidade de observação.


Entrar nessa questão sem ter um diploma psiquiátrico é arriscado, mas a verdade é que Amélie Poulain apresenta todos os sintomas de PAS. Ou, pelo menos, a grande maioria deles. E apesar de essa não ser uma síndrome ou um transtorno de personalidade, ser PAS pode ser visto como algo perturbador para quem vive ao redor e não entende. Parece incômodo as preocupações excessivas com o bem estar alheio, completamente movido pelo alto grau de capacidade de empatia. Parece exagero a observação excessiva e o silêncio constante, ou as respostas automáticas e a sutileza que parece milimetricamente programada.


Os sentimentos PAS estão ligados diretamente com uma racionalidade latente, em que as pessoas com os sintomas são muito mais sensíveis ao ambiente em que estão inseridas, e alcançam grande facilidade na leitura das ações, comportamentos e falas ao seu redor. Ou, se melhor seria simplificar, PAS são aquelas pessoas sensíveis demais (mas não do jeito dramático que você deve estar imaginando), que são detectores ambulantes de micro expressões e ações, mas sem precisarem estudar sobre. PAS são as versões humanas e automáticas, altamente desenvolvidas biologicamente, dos estudiosos da pseudociência de expressões faciais e comportamentais.


As sutilezas do dia, aquelas que ninguém está disposto a ver, são processos bem comuns na vida das PAS, e Amélie Poulain parece entender isso perfeitamente. Mas vale lembrar que esse não é um tipo de diagnóstico de personalidade que chega fácil e é auto diagnosticado. Para saber se você tem as características, consultas psicológicas precisam ser feitas, onde o autoconhecimento e onde as perguntas podem ser feitas e estudadas de acordo com as suas ações reais do dia a dia.


A OBSERVAÇÃO


Apesar das características pessoais e muito peculiares de Amélie Poulain, o roteiro foca em comunicar uma mensagem essencial: todo mundo pode ser observador. Independente dos seus traços de personalidade, você também tem esse dom aí, escondido na mente.


Observação, apesar de inevitável para PAS, é como qualquer outra coisa na vida: requer treino, atenção constante e empenho. Basta passar a olhar verdadeiramente ao redor, encontrar sinais delicados nas pessoas, delicadezas nos dia, mudanças suaves que percorrem a rotina. Treinar o olhar é como ir à academia treinar um músculo do braço ou da perna. Mas esse não vai ter dor, e o pós-treino traz consequências instantâneas e permanentes. Uma vez com o olhar treinado para achar a beleza e o sutil do dia, nunca mais se perde esse dom.


De um ângulo técnico, a produção e direção de fotografia foi direta sobre, enaltecendo e adicionando experiência ao roteiro. Afinal, “O fabuloso destino de Amélie Poulain” não é uma obra apenas de observação de história. É uma experiência completa, onde a valorização de cada tomada pode ser uma verdadeira viagem.


Pausar o filme é um bom treino para o olhar e para as descobertas culturais, já que muitos detalhes estão ali para serem vistos de forma leve mesmo. Essa discussão surge, inclusive, no próprio filme. Como as pinturas podem ser vistas e como o artista chegou naqueles exatos lugares e perspectivas? Renoir teria a resposta para nos oferecer, e o roteiro brinca sobre a imaginação que a observação minuciosa e detalhada de uma obra de arte tem a nos oferecer.


Seria o roteiro da vida de Amélie Poulain uma fanfic sobre a moça solitária do quadro de Renoir? Seria ela uma versão real das rotinas que nos sufocam? O roteiro nos provoca para buscar essas respostas mesmo. Assim, descaradamente, ele nos questiona: até onde você é capaz de aguentar sem notar o leve da vida?


♥ Olive Marie

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