JANE AUSTEN: COMO LER ROMANCES MODERNOS

 


O ano mal começou e já venho tentando entender o que tem acontecido com leitoras de romances. Isso porque, para a minha surpresa, Jane Austen tem voltado a sumir do mapa literário. E dessa vez é por ser “velha demais”.


Quando pensamos em Jane Austen, claro que deduzimos que é impossível que ela suma de verdade do mercado, mas o problema que tem se instalado é que ela tem arrecadado legiões de fãs que assistiram ao filme “Orgulho e preconceito” (2005), mas que se sentem incapazes de ler o livro.


Pensando com mais clareza no assunto, as maiores queixas chegam em contextos como: “é uma escrita muito arrastada” ou “não esperava que fosse ser pouco dinâmico assim”. E o problema dessa reclamação pode ser importante para analisarmos o cenário literário atual, mas também pode ser importante para repensarmos como lemos, de verdade, os nossos romances. Isso porque, caso você não saiba, até sobre estudos de concentração a obra de Austen já passou. E para a surpresa de zero pessoas, descobrimos que seus livros são mesmo capazes de aumentar nossa capacidade de foco.


Jane Austen, na verdade, foi responsável por muitas coisas ao nosso redor na literatura moderna. E mesmo que isso pareça só uma puxação de saco porque sou muito fã de sua obra, a verdade é que ela realmente fez história e moldou nossa forma de ler romances para sempre.


AULAS DE LITERATURA


A grande crítica recente sobre as obras de Jane Austen são sobre como suas obras são arrastadas demais, que os protagonistas não ficam juntos logo, que não tem beijo… Bom, deixa eu te soltar um spoiler sobre tudo isso antes de seguirmos: Jane Austen nasceu e viveu entre 1700 e 1800.


Quando suas obras foram escritas, a literatura, a cultura e a sociedade não eram como hoje em dia. E sei bem que a tecnologia nos faz ter a sensação de que as oportunidades de debates eram como as nossas e que as informações eram acessíveis a todos, mas não era por aí.


Escrever sobre beijos, carícias ou coisas do gênero não era normal, permitido ou, veja só: possível. Quanto a serem obras arrastadas e o casal demorar a ficar junto, isso se deve porque estamos falando de romances, e não necessariamente de romances românticos.


Para entender isso precisamos resgatar as aulas de literatura e compreender que o termo romance não se refere apenas a romances românticos. O gênero romance fala sobre obras escritas durante o período romântico, que surgiu no século XIX e não fala sobre relações que levam a casamentos ou namoros. O termo romance se refere a obras que falam sobre experiências pessoais, focando no indivíduo protagonista da obra e que foca em descrever a evolução pessoal de suas personagens.


Em resumo, o termo “romance” pode ser usado para todos os tipos de obras que falam sobre “jornada do herói” e que replicam experiências humanas reais. Um de seus principais precursores, inclusive, foi a obra “Dom Quixote”. Isso também quer dizer que esses livros são escritos em prosa, que são mais longos e que precisam de espaço para descrever suas personagens e diferentes evoluções pessoais.


Depois disso, precisamos entender que Jane Austen escrevia romances de formação, que são obras que focam sua narrativa em uma imagem protagonista e usa artifícios de linguagem para criticar ou exaltar os meios de vida do seu tempo. Nos romances de Austen, por exemplo, a principal forma de debater sobre seu tempo é satirizar as condutas dos ricos, brincar com a inocência das moças que eram proibidas ou desestimuladas a estudar, e debochar das regras de etiqueta de seu tempo.


Eu sei, parece um saco precisar explicar tudo isso só para que alguém tenha coragem de dar mais uma chance aos livros dela. Mas isso só acontece porque os estudos têm sido negligenciados há décadas, e compreender formações básicas de estruturas literárias deixou de ser importante.


E para ler clássicos, precisamos entender contextos literários. É triste, mas é um fato. A vantagem é que eu adoro falar sobre esses temas e sobre Jane Austen, afinal, foi ela quem inventou os romances românticos que conhecemos hoje.


MOCINHOS SUSPEITOS E SUSPEITOS MOCINHOS


Enquanto você lia ou assistia algo e desconfiava do mocinho bom demais, pensou de onde veio essa massiva ideia de que os muito bonzinhos escondem algo? Já tentou entender de onde vem a fascinação pelos morenos sarcásticos? E por que sempre queremos que o casal fique junto no final?


Compreender a racionalidade humana é uma busca eterna da nossa essência. Mas algumas pessoas transformaram isso em arte, e a gente adora consumir coisas assim, porque queremos respostas e porque precisamos pensar sobre nós mesmos. É um fardo!


Jane Austen foi longe com isso, e criou com muito humor satírico experiências humanas reconhecidas na sociedade há séculos: amigas oportunistas, famílias interesseiras, regras de conduta a serem quebradas, solados que não entram no exército porque gostam tanto assim de proteger e manter a ordem… A lista de hipocrisias e babaquices humanas é longa, e mais da metade foi criticada nos romances de Austen.


Com o sucesso que foi ganhando em seu tempo (mesmo após a sua morte), Jane Austen se estabeleceu como uma das precursoras dos triângulos amorosos, que aparece de forma clara em “Razão e sensibilidade”. Sabe o moreno alto de humor sarcástico e passado duvidoso, que vira o mundo de cabeça para baixo só para ver a protagonista feliz? Foi mr. Darcy o protagonista masculino que inventou esse contexto.


Mocinhos fofos e companheiros, bons demais para ser verdade, que se provam canalhas obstinados? Escolha em “Orgulho e preconceito” ou “Razão e sensibilidade”, existe um desses para cada um dos romances. E que tal a amiga rica que quer fazer uma mudança no visual e no meio social de uma amiga mais pobre e inocente, que está tentando muito se encaixar? “As patricinhas de Beverly Hills”? Também, mas só porque Jane Austen escreveu “Emma”.


E que tal personagens com a imaginação aflorada, que acham que os livros são como a vida real e que criam teorias imaginativas demais sobre contextos comuns, mas fora da sua vida pacata? Ou, quem sabe, você gosta de ler e escrever fanfics… “A abadia de Northanger” inventou o conceito de fanficar, posso te garantir.


Parece boba essa informação, mas é realidade que foi Jane Austen a responsável por transformar essas formas de literatura em hits mundiais. Foi ela quem definiu os romances românticos modernos, porque foi a grande responsável por criar e/ou popularizar alguns dos maiores clichês da literatura.


MAS SÓ SE PODE MORRER UMA VEZ


Quando tentou se publicar, ainda muito nova e cheia de esperanças, Jane Austen foi ignorada por editoras e pouco ovacionada pelo público. Foi “Orgulho e preconceito” que a catapultou para a grande literatura e incluiu em rodas de estudo e de reconhecimento. E todos os seus livros seguiram esse mesmo exemplo, porque suas tramas são mesmo excepcionais.


Depois de sua morte, sua irmã Cassandra (e posteriormente os membros de sua família) manteve viva a tradição de seus livros sempre serem vistos como eram: críticos, ácidos, reais e promissores. Sua genialidade de crítica está aí, basta termos atenção para ler e aprender.


É óbvio que, se os filmes inspirados em suas obras continuam surgindo e histórias de época nunca param de nascer - e só porque Jane Austen continua influenciando pessoas -, ela jamais irá morrer de fato na cultura e no imaginário coletivo. Mas começarmos a achar que suas obras são inferiores só porque não têm aquilo que nos acostumamos a consumir não é apenas burrice, mas desperdício de boa literatura.


Foi “aprendendo” com ela que algumas das nossas histórias modernas preferidas surgiram, e mesmo que hoje exista a hipervalorização do sexo e que romances clichês pareçam ser algo completamente moderno e moda do booktok, a realidade não é por aí.


De que adianta nos importarmos tanto com a literatura, com a forma de consumo de obras e com o estímulo à cultura inteligente, se tornamos nossas expectativas rasas e bitoladas, sempre na busca por mais do mesmo?


Pode ser que Jane Austen não seja para você, que não estimule ou desperte o melhor de si como alguém que ama livros e literatura, mas é indispensável entender, reconhecer e admitir seu impacto para as nossas formas de consumos atuais. Precisamos conhecer o passado para valorizarmos o presente e criarmos o futuro. E isso também serve para a literatura.


Em um tempo em que mulheres têm sido subjugadas e desvalorizadas, em que discursos misóginos têm voltado a ganhar força, precisamos aceitar e reconhecer as mulheres que trilharam para que hoje tenhamos espaço para combater esses discursos. Jane Austen foi uma delas, inclusive. E mesmo que pareça que “ela só fala de amor”, na verdade, muitos discursos feministas e progressistas estão escondidos em sua obra. Suas heroínas são mulheres que buscam seus espaços pessoais e valorizam suas qualidades por si só, sem validações sociais ou masculinas.


Sabemos que Jane Austen não vai morrer jamais no nosso imaginário coletivo, mesmo que não seja sobre ela que estamos falando. Mas precisamos afogar suas obras em buracos escuros, em busca apenas do que a modernidade nos dá? Não somos mais capazes de consumir algo “longo”, porque nos condicionamos demais a conteúdos curtos e rasos?


♥ Olive Marie

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