MANU GAVASSI: A NARRATIVA PERFEITA

 


Em 2020 uma coisa muito peculiar aconteceu: uma cantora teen entrou no BBB. E esse assunto parece voltar à tona desde então, já que, ano após ano, os novos participantes tentam recriar a estratégia dela de marketing. Mas isso não é tudo…


Outro fenômeno aconteceu: Manu Gavassi deixou para trás, de uma vez por todas, seu padrão de cantora teen.


Não que ela tenha vergonha disso, ela mesma brinca com a forma com que as pessoas falam e pensam sobre ela, mas é interessante pensar na trajetória dela se escrevendo de uma forma não linear. E talvez eu pense assim porque, quando estava no Ensino Médio, um professor de uma escola em que estudei (e que tratava seus alunos como membros seguidores de seitas), começou a se incomodar em massa com o meu jeito “Gavassesco” de ser.


O homem em questão era um tipo rabugento, no auge dos seus trinta e tantos anos, que abominava a ideia de uma aluna aparecer maquiada às sete da manhã na escola. E, tudo bem, é muito cedo para adolescentes estarem maquiadas; mas será que também não é cedo demais para mulheres adultas, mães de dois ou mais filhos, casadas e com o mundo nas costas, estarem maquiadas, engravatadas e de salto às seis, só porque precisam parecer profissionais e inabaláveis?


Como a própria Manu Gavassi escreveu na sua nova música lançada, chamada “31”: “Não tenho mais 22 nem 23 / Acho que os 30 me fizeram viva, me caíra bem”.


Eu estou na porta dos 30, e quanto mais os dias andam, mais eu sinto que essa idade me caí melhor e combina comigo como qualquer outra nunca combinou. E como toda cria de Manu Gavassi, que usava luva de renda preta sem dedos até em dias ensolarados, me sinto no dever de falar algumas coisas sobre amadurecer nessa geração…


UMA HISTÓRIA GRANDE CONTADA RÁPIDO


Manu Gavassi começou sua carreira aos 16 anos de idade, quando eu estava igualmente na adolescência e igualmente perdida. Jogada em um grupo de amigas que, sejamos sinceras, não eram mais ocas por falta de espaço, e eu me sentia um alien por não ser como elas. E tudo bem, porque todo ser humano é oco aos 14, 15, 16, 17… Talvez sejamos ocos até o último dia de nossas vidas. Só que esse não é o meu ponto…


O meu ponto aqui é que, naquela época, ainda não éramos uma geração que causava impacto. Me lembro de assistir aos clipes na televisão e pensar como nada daquilo era para mim. A Sandy tinha saído de moda, mesmo ainda compondo e criando sua carreira, e as coisas que tocavam na rádio não pareciam falar comigo.


Fui criada em uma família em que o rock transcendia gerações, com uma escala rápida de Elvis Presley (avó), Beatles (tios mais velhos), Queen (tia do meio), Kiss (minha mãe), System of a Down (primos mais velhos) e Linkin Park (irmão mais velho). Eu fui ensinada a ouvir isso, a consumir rock e a entender o diálogo religioso e político que isso envolvia. Mas eu também era a única da família que ouvia Sandy e gostava. Me sentir oprimida era parte do processo de evolução da minha feminilidade.


Óbvio que isso não tira o feminino das mulheres da minha família, especialmente porque sei a história que carregamos e nenhuma dessas mulheres perdeu sua essência por ouvir algo assim, mas o fato é que eu não tinha onde me agarrar quando era motivo de piadas por esperar, ansiosamente, que a Sandy tocasse na rádio.


Quando Manu Gavassi estourou, senti um alívio de saber que eu não era a única que amava algo mais leve, músicas que falassem de sentimentos sem precisar arrebentar os tímpanos alheios com sons de guitarra que duram mais de dois minutos. E, não me entenda mal, eu ouço todas essas bandas todos os dias da minha vida, mas saber que posso ouvir tudo isso e ainda curtir algo leve, porque eu não sou um robô criado pelos meus ancestrais, me deixa leve.


Contar isso de forma resumida é: Manu Gavassi criou um elo entre todas as pessoas que não se sentiam encaixadas dentro de suas realidades. Massivamente, garotas perdidas nas suas próprias rotinas, sugadas em lares que: ou esperavam que elas fossem como a Sandy ou que elas fossem o completo oposto da Sandy.


Manu Gavassi recriou ser a Sandy. E isso fez toda a diferença.


A LIBERDADE DE NÃO SER A SANDY NEM A PITTY: SER A MANU


Naquela época, quando as redes sociais ainda eram muito controladas por tempo permitido pelos pais, quando só dava para usar MSN e Orkut no computador, o Facebook e o Twitter ainda estavam nascendo, e tudo dependia de quanto tempo a gente podia ocupar a linha telefônica de casa – porque os modens ainda eram cabeados e demoravam para funcionar –, garotas como eu só podiam escolher entre duas personalidades: Sandy ou Pitty.


Isso se estendia de um jeito burro para todos os contextos, porque rivalidade feminina era moda e estava tudo bem esperar que a gente se encaixasse em apenas um modelo.


Ou você era a Mia ou era a Roberta. Ou era a Sharpay ou era a Gabriella. Ou era a Sandy ou era a Pitty. Ou era a Britney Spears ou era a Avril Lavigne. Você sempre tinha que escolher um lado. E esse lado estava sempre nos pontos oposto de: ou você era uma “patricinha aparentemente vazia que só falava de amor” ou você era “uma garota politizada que se vestia diferente e não ligava para sentimentos românticos”.


Deu vontade de gritar aí? Aqui deu. E deu muito!


Quando a Manu Gavassi surgiu, usando elementos de vestimentas “característicos” do rock, como unhas sempre pretas, luvas sem dedos e coturnos, e cantando músicas sobre sentimentos e incertezas adolescentes, a gente perdeu o rumo de casa. Literalmente falando. Afinal, alguém como eu (apaixonada pelo estilo da Sandy e igualmente viciada em ouvir Pitty), finalmente podia soltar as rédeas e se assumir como um ser humano normal. Ou seja: complexo demais para ser encaixotado.


Aquela coisa do Ensino Médio aconteceu logo que a Manu Gavassi lançou a música “Planos Impossíveis”. Meu professor de literatura, um homem intelectual, com uma fingida depressão de brinde para deixar óbvio que sua mente o deixava melancólico, entrou na sala querendo ser coach de garotas de quinze anos.


“Que nojeira!”, pensei eu, mas sair da sala e arrumar uma encrenca ia me fazer ser expulsa, pela segunda vez em um ano, de duas escolas diferentes. Então eu contive minha língua e ouvi até o fim.


Eu ia para a escola de laços na cabeça, delineado gatinho colorido em tons pastéis, batom rosa e luvas de renda. Eu ouvi Manu Gavassi no meu MP4 pink metalizado… E ele entrou na sala dizendo que: “toda garota branca, de classe média alta, atravessava a rua quando estava andando na mesma calçada que um homem preto usando chinelos. Mesmo de dia. Por medo de ser roubada”. Segundo ele, “garotas (eu) iam para a escola maquiadas tão cedo porque eram escravas na maquiagem e não entendiam o quanto suas belezas naturais eram incríveis”, e que toda vez que ele estava ouvindo rádio no carro e Manu Gavassi começava a cantar, ele era obrigado a abaixar o volume “porque a voz dela é tão estridente que sinto que meus tímpanos vão estourar”.


Pois é: agora deu vontade de gritar, né?


A NARRATIVA QUE ELA NOS DEU


Toda essa minha história e experiência pessoal para dizer que: Manu Gavassi nos deu uma história nova.


Eu sempre falo sobre narrativas femininas, espaços seguros para descobrirmos nossa verdade pessoal, a guerra que é amadurecer sendo mulher em um mundo feito por e para homens; mas nunca falei, até onde me lembro, do quanto é preciso coragem para falar sobre nossas vidas e o quanto demanda tempo criar nossas próprias narrativas.


Veja só: Manu Gavassi demorou 30 anos. E todas nós estamos nesse mesmo barco. Ou, pelo menos, todas nós que nascemos antes do estouro digital e usamos internet discada. Ou seja: todas nós que não tinham meios e nem recursos para alcançar discursos sobre feminismo, liberdade de expressão, função da arte e espaços menos opressores, com um único clique.


Depois de 2020 todo mundo virou fã de Manu Gavassi. E nem adianta dizer que não. Porque, mesmo que você não goste das músicas dela, precisa assumir que sua estratégia de marketing para o BBB foi genial. Assim como precisa assumir que ela tem muita coragem de falar as coisas que pensa.


Ok, eu sei. Ela é branca demais, menininha demais, elitista demais e riquinha demais. Mas ela está aí, falando o que sente. E mesmo que a sua realidade não seja como a dela, você sabe como é preciso ser forte para abrir a boca.


“Eu aceito o fracasso iminente!”


Qual é? Ela mesma sabe que sua narrativa nem sempre é a certa e nem sempre funciona para todo mundo. E TUDO BEM! Mesmo. Vamos tatuar um “tudo bem” na alma e parar de problematizar as coisas. Se a narrativa dela não conversa com a sua, muda a estação e a frequência do que está consumindo, e chegue em algo que faça sentido para você. Não tem problema não ser como ela.


Esse novo projeto dela, onde ela fala sobre as coisas que tem estudado e pensado, sobre seu tempo de reclusão já fora do BBB, sobre como o mercado consome quem realmente quer fazer algo… É bom. Tem qualidade, tem espaço, tem força. E mesmo que seja “só para algumas pessoas”, ela deixa clara sua intenção de só ser livre.


Choque ou não: logo ela, que sempre se assumiu uma fã número um de Sandy, colocou a Pitty em seu projeto audiovisual, justamente na música em que ela mesma se chama de Monalisa e diz que ser paulistano não vende.


(E não “vende” mesmo, porque a gente sofre com um empoderamento regional institucionalizado. E precisamos de anos para entender que São Paulo não é o umbigo do Brasil.)


Agora a pergunta é: você, mulher, já ouviu o novo projeto da Manu Gavassi hoje?


♥ Olive Marie

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