SEM RASTROS: CASOS CRIMINAIS EM CASO DE SOBREVIVÊNCIA
Tenho muitas memórias afetivas da infância que envolvem casos criminais. E não de um jeito ruim ou estranho. Muito provavelmente, de formas completamente mais saudáveis e pouco problemáticas, esse sempre foi um lance da minha mãe e meu…
Sendo filha de uma mulher apaixonada por psicologia forense, fui uma criança que passava as madrugadas dos fins de semana assistindo seriados ao lado da minha mãe. Assistíamos “Cold Case”, “Desaparecidos” e “Supernatural” no SBT, na época em que os três passavam em sequência.
Muito provavelmente, foi nesse momento da vida que desenvolvi dois talentos muito específicos que impactaram para sempre minha personalidade: desconfiar de pessoas simpáticas e solícitas demais com os problemas alheios; e usar casos criminais como cantigas de ninar. E apesar de ter apreço por histórias criminais como canções de ninar não ser algo incomum, essa fascinação vem de um lugar comum para muitas mulheres…
CASOS CRIMINAIS E MULHERES GOSTOSAS
Existem dois comentários que me marcaram profundamente sobre minha preferência por casos criminais… O primeiro veio de uma pessoa que me era muito querida, e me disse — quando tínhamos acabado de nos conhecer e falamos sobre o tema: acho especialmente fascinante garotas que gostam de histórias de crimes violentos, porque isso diz muito sobre o que elas estão dispostas a aguentar”. Enquanto o segundo comentário de uma antiga colega de trabalho que também gostava de casos criminais: “mulheres gostosas sempre são muito fascinadas por crimes reais”.
Sobre mulheres gostosas serem atraídas por crimes reais eu não sei nada, mas fiquei lisonjeada que ela me considerasse uma gostosa. Afinal, há três elogios que só são relevantes quando vindos de outras mulheres: “você é uma baita gostosa”; “eu amo a sua inteligência” e “você é a pessoa mais incrível que eu conheço”. E, como mulher hétero, posso afirmar que qualquer uma dessas frases, vindas de um homem, nunca são um bom sinal…
Já sobre a primeira afirmação, me lembro de dizer: “pois é, garotas que curtem casos de crimes, dificilmente, vão ser a vítima”. Claro que isso não quer dizer que mulheres que não são fãs de crimes reais são presas fáceis, enquanto as que são fãs estão imunes. Porém, há algo que precisa ser notado nesse padrão.
CHAPEUZINHO VERMELHO ESTÁ DIFERENTE
Quando a série documental sobre o caso de Elize Matsunaga saiu, a maioria do público feminino afirmou que “entendia” a causa do crime. Talvez porque, comparando casos criminais cometidos por homens e por mulheres, a quantidade de criminosas que mataram o parceiro é bem menor. Mulheres também costumam ser menos sádicas e violentas, suas cenas de crime são — geralmente — menos sangrentas. Elize foi uma excessão.
E enquanto são os homens que, massivamente, estão matando mulheres, mulheres que estão (de forma igualmente massiva) prevenindo outras mulheres sobre homens. Afinal, a maioria dos conteúdos criminais criados para a internet, são de mulheres.
Quando digo que a vítima dificilmente entende de casos criminais, quero dizer que, enquanto estudamos sobre crimes reais, aprendemos novas técnicas de sobrevivência contra os homens. Aprendemos sobre discursos manipuladores, chantagens emocionais e crescentes violentas. Descobrimos que aquele marido que “só ficou violento depois da primeira gestação” sempre deu sinais sutis e entendemos que por mais que a fúria humana seja inevitável, são poucas emasculações para muitos estupros post mortem.
Ouvir sobre casos criminais antes de dormir, sendo mulher, tem sabor de vingança em certos graus… E também tem certo grau de segurança emocional para o nosso instinto de sobrevivência.
COMO MAPAS DE RASTREAMENTO
O podcast “Sem rastros” é focado em casos criminais de desaparecimento. E mesmo que fale sobre alguns casos de assassinato, a maioria dos episódios levam títulos com nomes de mulheres. Afinal, o desaparecimento é apenas o sintoma inicial do feminicídio comprovado.
Enquanto a narradora, Luciana, fala sobre mulheres que somem do mapa sem deixar qualquer rastro significativo, desvendamos mais uma faceta masculina: a capacidade de fazer um assassinato óbvio parecer uma fuga calculada pela própria vítima. Assustadoramente real.
Passei a semana maratonando os episódios e concluí que, ou um homem causou o desaparecimento ou foi um homem a causa de outra mulher causar o desaparecimento da vítima. É quase um mapa de rastreamento do comportamento humano. E tudo soa como um guia de sobrevivência.
E talvez seja isso que nos deixa, verdadeiramente, gostosas. Saber sobreviver além da violência masculina, é uma grande fonte de existência. Casos criminais existem para mulheres aprenderem a sobreviver, e isso é nossa maior arma.
Olive Marie ♥