POOR THINGS: OS MOLDES DA NOVA ERA

 


Quando penso em “Poor things”, nova estreia queridinha do cinema, penso em uma amiga que teria amado assistir esse filme. Penso nas coisas que ela criaria e diria sobre, penso nas roupas e nas maquiagens que faria inspirada na obra. Mas penso, em especial, na nossa forma de sociedade como um todo.


Com Emma Stone como protagonista e um elenco de peso, que inclui Mark Ruffalo, Willem Dafoe e Margaret Qualley, a trama conta como Bella Baxter tenta se adaptar a um mundo que não foi feito para ela. E o mais interessante disso tudo é a forma como a obra se choca com o futuro e o presente. Mesmo que use referências curiosas sobre o passado.


A primeira coisa que pensei quando comecei a assistir foi na Era Vitoriana, depois pensei em Mary Shelley, depois pensei em “O mágico de Oz”, e só no fim entendi a história. E talvez você pense coisas diferentes quando for assistir, porque esse é um filme cheio de referências para mulheres, e daqui podemos partir para vários pensamentos. Com certeza, “Poor things” é um filme de experiência particular e ponto.


Mas por onde começamos a entender a história, se ela se preza a ter várias referências? É uma verdadeira universalmente reconhecida que, para simplificar, é sempre bom começar pelo começo.


MARY SHELLEY, O PARTO E O LIVRO


Machos aficionados por ficção científica, que acham que esse é um gênero masculino, talvez devessem sair da página (caso tenha algum lendo). O papo agora é para pessoas prontas para conversar como pessoas adultas. E com isso eu começo dizendo que: ficção científica é um gênero inventado por uma mulher.


Tem um diálogo muito legal no filme “O clube de leitura de Jane Austen”, em que a personagem de Maria Bello fala para o personagem de Hugh Dancy que ficção científica não é o estilo dela e que ela gosta mais de “gêneros de meninas”, como Jane Austen e livros para “menina romântica”. E o resto do tempo, o Grigg (Hugh Dancy), fica tentando provar para ela que ficção científica é para mulheres. E que é escrito por mulheres.


Ele menciona Ursula Le Guin e mais autoras que, com muita força, tornaram o mercado literário desse gênero um manifesto da inteligência e perspicácia feminina. E mesmo que pensemos em ficção científica como robôs, inteligência artificial e realidades distópicas (ou utópicas em alguns casos), tudo começou com Mary Shelley e a metáfora de um parto.


Muitas histórias circulam o imaginário de Mary Shelley, mas nenhuma é tão boa quanto a que diz que “Frankenstein” é uma metáfora para o parto e para a perda de um bebê. E mesmo que isso pareça doideira, sempre que penso nessa ideia, lembro da obra “Hospital Henry Ford”, pintada por Frida Kahlo. E a conclusão é simples: a maternidade nunca é plena e suas aflições começam pelas incertezas de algo que não sabemos se vai ou não acontecer. O parto é, por si só, algo doloroso de se enfrentar emocionalmente.


E apesar de concordar com muitas dessas especulações sobre o livro mais famoso de Mary Shelley – especialmente porque parir pode se tornar visceral e dismórfico durante os processos da dor –, não posso afirmar que seja real. Mas quando o tema do nascimento surge em “Poor things”, pensamos: “por que não?”


Bella Baxter é uma pessoa com deficiência? Ela é um escárnio da Era Vitoriana? Ela é um questionamento sobre a floração feminina? Bella Baxter é o resumo do que Mary Shelley quis nos contar? Ou Bella Baxter é Mary Shelley?


O SET DE “O MÁGICO DE OZ” E O INÍCIO DO FIM


Mary Shelley criou a ficção científica, e com os anos isso foi sendo moldado e adaptado para estágios evolutivos da nossa própria essência como sociedade. E a obra infantil de fantasia, “O mágico de Oz”, foi escrita por um homem, não tem elementos de ficção científica e fala sobre a espiritualidade pelas vertentes de uma comunidade religiosa um pouco peculiar… Em resumo: em nada se comparam.


E mesmo compreendendo que uma coisa não tem nada a ver com a outra, preciso lembrar que Judy Garland era uma criança que, muito cedo, foi submetida a experiências pessoais intensas com drogas, público e objetificação. Judy Garland foi quase um experimento social masculino, dentro do set de “O mágico de Oz”. E foi ali mesmo o início do seu fim. Seu fim, até mesmo, como uma mulher.


Apesar das minhas infelicidades com certos posicionamentos de Simone de Beauvoir, precisamos assumir que sua frase mais famosa é muito clara sobre como conquistamos nossos direitos na sociedade: nos tornamos mulher. E nos tornamos mulher quando temos que abrir mão de brincar de boneca, quando temos uns doze ou treze anos, para passarmos a brincar com maquiagens, saltos altos e responsabilidades que não são nossas. Homens, por outro lado, nunca são cobrados sobre parar de jogar videogame ou fazer piadas obscenas. Não nascemos mulher, nos tornamos. E nos tornamos mulher quando somos ensinadas que amadurecemos mais cedo, que somos mais responsáveis e que nos interessamos por homens mais velhos porque são eles que já são mais maduros e pensam como nós.


Bella Baxter passa por esse mesmo processo. No começo do longa, ela é uma mulher adulta que não se encaixa com a sociedade ao seu redor porque se porta como uma criança, e alguns diagnósticos nos passam na cabeça de forma inevitável. É o próprio personagem de Willem Dafoe quem diz: “her mental age and her body are not quite synchronized”.


PARA ONDE ESTAMOS INDO


Bella Baxter viaja para alguns países quando parte da Inglaterra, e todo o cenário ao seu redor migra de uma visão vitoriana e clássica, para algo futurista e moderno. Mas um futurista e moderno que ainda não é o nosso estilo de vida do presente. Em resumo: ela está entre o passado e o futuro. Quem foi, quem é e o que se tornará na conclusão da obra.


Quando entendemos como Bella foi parar na antiga casa vitoriana ao melhor estilo Mary Shelley, começamos a compreender que, desde antes de ser a Bella Baxter que nos é apresentada no começo, ela já era um objeto e um experimento social dos caprichos masculinos. E como toda boa ficção científica, nos mostra para onde vamos.


Com caminhos bizarros onde a humanidade tem caminhado, com o mundo nos destruindo gradativamente, e com o regresso de muitos pensamentos e ideais que já achávamos ter superado, compreendemos que a única forma de ir para a frente, é voltar um pouco para trás e quebrar as regras novamente.


Como mulheres, teremos que ver o pouco tempo de vida que nos resta regredir para podermos fazer o resto do mundo entender que podemos ter soluções eficientes para a vida. Seja ensinando outras mulheres sobre princípios básicos de sociedade ou mostrando para os homens ao nosso redor que somos mais do que seus broches de estimação.


Não temos como saber quanto tempo nos resta, tanto como pessoas físicas quanto como sociedade. Estudos dizem que, muito provavelmente, em três anos estaremos todos mortos pelos efeitos climáticos que nós mesmos causamos. Mas mesmo que sobrar mais tempo: para onde estamos indo? Quais são os lugares que devemos nos permitir estar? Como vamos entender nossos papéis pessoais e pelo que vamos lutar?


No fim das contas, talvez precisamos entender que entre tudo que nos resta, a literatura e a carreira são mais eficazes do que pensávamos, e talvez nossa próxima forma de vida seja deixar legados para espécies que ainda não imaginamos que vão surgir no nosso planeta quando nós não estivermos mais aqui. Em resumo: acho que estamos todos criando Bellas Baxters.


♥ Olive Marie

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