COMO SAIR DE BUFFALO: AS MENTIRAS QUE ESTADUNIDENSES CONTAM

 


Eu sou apaixonada por comédias românticas. Adoro seus ideais de feminilidades fortes, amo seus mocinhos improváveis e, em especial, gosto de como lições sobre a raça humana são tranquilamente explanadas. Em resumo: gosto quando levo um tapa na cara sobre coisas que estou fingindo não ver.


E como boa viciada em comédias românticas de qualidade duvidosa, me apaixonei por “Como sair de Buffalo” na primeira vez que assisti.


Há alguns anos estava procurando novas comédias românticas para assistir – e isso tem mesmo ficado cada vez mais difícil –, e por um acaso cruzei com essa em algum streaming. E se tem Zoey Deutch, eu já sei que vou amar.


Em uma proposta muito peculiar, Zoey assume o papel de Peg, uma garota do subúrbio de Buffalo, em Nova York. E a questão com Peg é que ela vem de uma família bem humilde, perdeu o pai ainda na infância e ficou obcecada por dinheiro. Mas ela não quer dinheiro pelo dinheiro em si, ela quer sair de Buffalo, tal qual o título sugere.


PEG, A TRAUMATIZADA


Com uma mãe que trabalha em um salão de beleza informal na própria casa, um irmão que trabalha em bares e um pai que só deixou dívidas de herança, tudo que Peg quer é ter dignidade.


E não que sua vida não seja digna, mas ela conhece muito sobre finanças, sabe aplicar seus lucros e tem um tino comercial fora do comum. E quanto mais ela envelhece, mais descobre novas formas de conseguir seu próprio dinheiro. Não só para sair da cidade que considera uma perda de tempo, mas também para tirar sua mãe e seu irmão da pendura.


Como toda criança traumatizada, criada em periferias ou áreas de baixa renda e alta criminalidade, Peg só quer conquistar algo seu e pular fora, junto com a família, das atrocidades que vê ao seu redor. E para conseguir o que quer, ela vai longe e acaba enveredando gradualmente para a criminalidade.


De venda de cigarros avulsos na escola até um truque barato para lucrar em cima de ingressos falsos dos jogos do time de baseball mais famoso de Buffalo, ela passa a desconhecer os limites entre certo e errado e se perde de um plano decente para sair mesmo de Buffalo.


Ver a Peg crescer, cometer pequenos delitos e ser punida por isso, em um contexto de cidade pequena e humilde, nos faz pensar em quantas outras crianças se criam assim por falta de chances. E, sendo bem realista: no contexto do Brasil isso é fichinha.


Sabemos das taxas de criminalidade no nosso país, enxergamos a extrema pobreza com facilidade, se não na nossa frente, pelo noticiário e pela internet. Sabemos como é duro ser brasileiro, sabemos como a América Latina (de um modo geral) acabou sucumbindo a pobreza e ao lento desenvolvimento social – e econômico – por causa de sistemas capitalistas e opressores de países desenvolvidos, que sempre se beneficiaram com nossa desgraçada. Afinal: é assim que funciona o capitalismo.


OS ESTADOS UNIDOS E A VIDA IDÍLICA QUE PREGAM


Me lembro de assistir, na infância, séries estadunidenses de pobres se dando bem. Sempre famílias de baixa renda subindo e se tornando nomes fortes em seus círculos pessoais. E posso enumerar vários desses tipos de cenários ideais, para muito além de “Um maluco no pedaço”.


Mas o divertido disso era que, mesmo criança, eu sabia que era mentira. Não só porque não existe família perfeita, mas porque eu convivia com pessoas que já tinham morado ou moravam lá. Eu sabia que era tudo uma farsa bem criada, e vindo da família que vim (onde consciência de classe sempre foi tratado como se deve: com realismo), tinha total noção de quanto disso tudo é fabricado.


Naquele tempo, jamais seria aceito fazer e produzir um programa com tema familiar que não pregasse os bons costumes e o tradicionalismo nacionalista estadunidense. Era completamente longe da realidade cogitar algo do tipo.


O mesmo se aplica a comédias, romances e dramas. A realidade de um país nada idílico só se mostrava de verdade em alguns gêneros específicos, e ninguém parecia se importar com isso. Mas com o aumento de acessibilidade que passamos a ter com a internet e as redes sociais, a cortina começou a descer como um todo, quebrando esse ideal de perfeição.


“Como sair de Buffalo” toca em um tema muito pertinente em todo esse discurso de quebra de valorização dos ideais: fala sobre o sistema opressor capitalista.


Nesse sistema de governo, jovens de 20, 19 e até 18 anos já acumulam dívidas absurdas em gastos hospitalares. Idosos são cobrados e roubados por casas de cobrança que representam o banco, e taxas ilícitas sobem e sobem. De repente, “Como sair de Buffalo” nos lembra que, mesmo que a gente queira muito, nenhum sistema baseado no capital funciona e é paradisíaco.


COMO SE SAI DE BUFFALO, AFINAL?


Apesar de parecer muito um discurso político sobre esquerda e direita, o filme está muito longe disso e essa não é a ideia. Mesmo porque, a trama toda é uma comédia romântica e tem foco em dar o máximo de finais felizes possíveis para o espectador.


A grande questão do filme é mostrar que existem sistemas que não funcionam, e que se tem gente sendo feliz nesse tipo de sociedade, é só porque pobres continuam sendo pobres e vivendo para servir aos bem afortunados.


Não se sai de Buffalo, se você quer mesmo saber. Mas existem formas de se viver em Buffalo, que é encontrar lugar entre os seus. E isso quer dizer que Buffalo, apesar de ser em Nova York, pode ser em qualquer lugar que vivamos.


Podemos encontrar paz vivendo com nossas famílias (quando boas), nossos amigos e nossos amores. Claro que importa onde estamos, porque a sociedade ao nosso redor vai sempre nos influenciar e governar, mas podemos dar o nosso melhor para não vivermos de maneiras tão desesperadoras como Peg estava vivendo.


Depois de assistir ao filme, entendemos que podemos ser mais do que estamos vendo em um quadro pequeno e começamos a expandir nossas percepções sobre o Brasil. Entendemos que existem mais vantagens do que desvantagens em muito de nosso governo, como a existência do SUS e vários tipos de atendimentos especializados e gratuitos. Também entendemos que romantização de certos tópicos e lugares pode ser ainda mais arriscado e problemático.


No fim das contas, saímos de nossas próprias Buffalos, mas de jeitos inesperados.


♥ Olive Marie

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