OS MANUSCRITOS PERDIDOS: COMO EMPACOTAMOS A HISTÓRIA

 



Charlotte Brontë produziu poucos romances na sua vida (quatro ao todo, na sua fase adulta), mas ficou marcada na história da literatura como uma das principais figuras da história. Seus romances de formação marcaram leitores de todos os cantos do mundo, de todas as idades.


Mas esse livro não é um romance de Charlotte Brontë. Muito pelo contrário. “Os manuscritos perdidos” é uma obra quase biográfica, que reúne informações sobre as obras de juvenília de Charlotte e seus irmãos. Tudo reunido e explicado por estudiosas na área da família literária mais promissora de todo o Reino Unido.


O livro também foca em explicar mais do que a obra de juvenília de Charlotte… Nesse livro aprendemos sobre toda a família Brontë, sobre as ambições de Charlotte e descobrimos alguns novos pontos de vista sobre a criação familiar e a visão paterna sobre a vida das irmãs. E isso não tem preço. Mesmo que eu tenha pagado apenas quinze reais no livro…


A FAMÍLIA BRONTË E SUA JUVENÍLIA


De todos os seis filhos do casal Brontë, quatro resistiram à doença na infância e chegaram à fase adulta com méritos dignos de nota. Dessas quatro crianças promissoras, três eram as meninas Charlotte, Emily e Anne. Branwell, o único filho do reverendo Brontë, se unia às irmãs em suas brincadeiras e em suas escritas. E foi com Charlotte que ele se viu criando durante toda a sua infância e adolescência.


O que sabemos sobre a família Brontë é que o reverendo Patrick tinha uma extensa biblioteca e permitia que seus filhos circulassem por ela livremente. Seus padrões literários eram imaginados, especialmente quando analisamos correspondências de seus filhos que sobreviveram ou quando notamos suas obsessões com certos autores e pensamentos idealistas e religiosos. Mas nesse livro a coisa ganha uma nova proporção.


Ao começar a leitura entendemos que a juvenília das crianças Brontë teve muita inspiração no livro de sua mãe, Maria Brontë. O livro, em si, não passava de uma biografia precoce, escrita por um antigo colega de escola do pai dos Brontë, Patrick, e tinha sido um dos únicos a sobreviver ao naufrágio que fez Maria perder grande parte de seus bens pessoais.


A questão com o livro é que, depois da morte precoce de Maria, Patrick se desfez de suas “revistas de romances”, porque as julgava fúteis e dispensáveis. Tal ação marcou a memória dos filhos, em especial, de Charlotte – então, a mais velha dos irmãos. Tudo que os filhos tiveram de Maria foi o exemplar, mantido pelo reverendo, que tinha sido escrito por seu colega.


Nas margens, as quatro crianças Brontë fizeram anotações, e nos poemas tendenciosamente religiosos, se inspiraram para criar suas próprias histórias. Nelas, em reinos quase mágicos e distantes, os irmãos falavam sobre política, religião, história e amor. E amor foi o que fez Charlotte se destacar entre todos eles, sem dúvida.


Mas o que aprendemos com a juvenília dos Brontë? Que Charlotte tinha tendências dramáticas (e provavelmente masoquistas) no amor, que suas imaginações sobre a figura materna eram um tanto deturpadas e que sua visão sobre o pai nem sempre era positiva. Branwell era um filho distante e buscava conforto, enquanto se debatia sobre temas atuais. Emily e Anne se omitiam das páginas dos livros, e como sua juvenília destruída (por elas mesmas), se mantinham distante das imaginações familiares sobre a figura materna.


E seria, a juvenília dos Brontë, uma forma de buscar a imagem materna?


MARIA BRONTË: UM IMAGINÁRIO (QUASE) COLETIVO


O naufrágio que fez Maria Brontë perder grande parte de seus pertences levou consigo algo mais interessante do que roupas, sapatos e livros. Levou Maria de seus filhos, antes mesmo que eles tivessem nascido.


Ao perder quase tudo em tal naufrágio, Maria Brontë estava gradualmente deixando de existir. O seu único livro sobrevivente, marcou a história dos filhos, mas ao ler as histórias criadas por eles em sua juvenília, entendemos que buscavam imagens da mãe na obra.


Mas mais do que no imaginário dos filhos, Maria Brontë entrou para o imaginário da literatura. Em especial porque nenhuma obra, mesmo madura, das irmãs dá grande foco para relações maternas. Todas as três irmãs, em seus respectivos livros, focaram em romances que não debatiam histórias familiares que não envolvessem fraternidade ou relações de primos. O matrimônio era focado em um imaginário coletivo da busca pela perfeição conjugal (visto em “Agnes Grey” em excesso), ou em disfunções maritais (muito presente em “O morro dos ventos uivantes”, “A inquilina de Wildfell Hall” e “Jane Eyre”).


Para nós, que lemos os livros e nos interessamos pela família, Maria Brontë também se torna uma curiosidade imensa. Quem era essa mulher que não deixou muito para os filhos? Quem era essa mulher que partiu e deixou a irmã como mãe substituta das suas crianças? Quem era Maria antes de ser uma Brontë? Vieram dela algumas atitudes e ideais mantidos pelos filhos? Ou toda a criação ficou de fato ao encargo de Patrick Brontë e do que ele imaginava como uma boa criação infantil?


Como imaginário, Maria Brontë sumiu das obras e ficou apenas no ambiente familiar, e na juvenília, encontramos traços de uma mãe imaginada como grande devota religiosa e apaixonada. Em especial, nos escritos de Charlotte, que parece tentar entender sua própria sexualidade e sensualidade pelo que imagina na própria mãe. Seria Charlotte, por ser a única a ter memórias mais amplas da mãe, a filha que herdou seus gostos e pensamentos sobre matrimônio e sexualidade?


VAMOS EMPACOTAR VIDAS!


Ao ler esse livro e entender como foi criada a juvenília e a imagem da maternidade para as crianças Brontë, entendemos um aspecto curioso da espécie humana: empacotamento de vidas.


Maria Brontë foi empacotada por seus filhos, logo depois de ser empacotada por seu marido. E isso pode ser bom por um lado, mas em maioria pode ser ruim. Sem sombra de dúvidas, é uma arte perigosa.


Patrick empacotou Maria pela visão de esposa e mãe amada, forjou uma figura de mulher extremamente religiosa, de mente pouco imaginativa e extremamente racional. Branwell pareceu imaginar a mãe muito pouco – ou quase nada. Anne era a que menos se lembrava da mãe, por ser a mais nova, e quase não teve laços criados. Pelas margens do livro sobrevivente de Maria, entendemos que Anne não se interessava em pensar na mãe de forma física, mesmo que tenha lido o seu livro muitas vezes (o que provavelmente fez).


Emily usou um dos poemas do livro da mãe para escrever “O morro dos ventos uivantes”. Se não todo o livro, cenas dele. E isso nos faz entender que Emily imaginava a mãe com drama e romance trágico.


Para Charlotte a memória da mãe se reteve ao que o pai queria que fosse: virginal e pura, religiosa e racional, pouco entregue a algo além de sua fé e sua missão familiar. No entanto, algo das revistas românticas, queimadas pelo pai, que Maria teve em vida, marcaram a mente de Charlotte como algo maior. Veio daí a ideia de masoquismo romântico ou tudo é culpa de Lord Byron?


Fato é que a vida de Maria foi empacotada, e talvez tudo tenha começado naquele naufrágio trágico. E como fazemos ao empacotar vidas? Como nos livramos do que a pessoa de fato foi e escolhemos o que lembrar sobre ela? E como não empacotar vidas, depois de já vividas?


♥ Olive Marie

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