ANNA AKHMÁTOVA - PARTE 1: A POESIA DA NOBREZA TÁRTARA

 


Por culpa de uma sociedade machista e opressora, muitos nomes de mulheres foram apagados da história do mundo. Figuras cheias de força e resiliência, que enfrentaram dores físicas e emocionais para ajudar a construir o mundo que nos orgulhamos de viver. E entre todas essas pessoas, poucas ganharam destaque no pós-morte que se tornou quase tão grandiosamente indiscutível quanto Anna Akhmátova.


E a importância de trazer de volta a existência dessa mulher para o nosso contexto atual é simples: Akhmátova foi grande como artista, mas foi imensa como consequência dos problemas sociais de seu tempo. Afinal, ela sobreviveu há duas guerras, passou pela miséria e foi símbolo de resistência de uma Rússia que centralizava sua memória pelas mãos de ferro do stalinismo.


Com a história russa sendo novamente moldada por poderio militar dos recentes acontecimentos, parece ainda mais relevante mostrar como grandes nomes nascem por lá. Akhmátova é, antes de qualquer observação, a força da arte russa em seus piores momentos, e a influência de uma voz forte dentro de um eco de silêncio. E, curiosamente, também é uma filha da Ucrânia, apaixonada pela ideia da própria origem e respeitosa com sua essência.


E se Anna Bunina fez literatura quando não se via esse futuro para mulheres, Anna Akhmátova reforçou que a literatura é sim um assunto para mulheres. Akhmátova provou que, sem sombra de dúvidas, aquele é o lugar de todas as grandes Annas. E é no grande império tsarista que nasce essa Anna.


PRINCESINHA TÁRTARA


Em 23 de junho de 1889, em Odessa, na Rússia Tsarista (hoje território da Ucrânia), nasceu Anna Andreevna Gorenko. Filha de um oficial naval do Império de Todas as Rússias – como era conhecido o território pré Primeira Guerra Mundial que era controlado pela dinastia Romanov –, a futura poetisa descendia de origem tártara por parte de mãe.


Foi ainda na primeira infância, antes de saber ler e escrever, que Akhmátova se apaixonou por poesia. O amor veio da mãe, que lia para ela e alimentava seu lado artístico. E aos onze anos, Anna começou a escrever seus primeiros poemas. É bem difícil, inclusive, imaginar o que a motivava a escrever nessa época, mas podemos deduzir que ali já nascia o que viria a ser um tipo único de escrita: a simplicidade dos atos e dos fatos.


Para além disso, o que sabemos da infância de Anna Akhmátova é que ela teve uma vida boa nesse momento, com cenários palacianos da Rússia dos Romanov, com parte de sua vida tendo sido vivida em lugares como casas de veraneio às margens do Mar Negro e o palácio do tsar, Tsarkoye Selo.


Foi ainda na adolescência que Anna Akhmátova escreveu o primeiro poema oficial de sua carreira, por volta dos seus 17 anos, pouco depois da separação de seus pais. E também foi nesse momento da sua vida que ela assumiu o sobrenome Akhmátova, uma herança familiar materna, já que o pai achava seu trabalho medíocre e deixou claro que ela não deveria se apresentar como uma poetisa de sobrenome Gorenko.


Certa de que a mãe se orgulhava de seu amor pela arte e pela poesia, Anna buscou referência para seu nome artístico segundo uma lenda familiar. A história contada dizia que o sobrenome Akhmátova era uma marca da descendência do guerreiro Genghis Khan, o que a tornava um tipo de princesa do povo mongol.


E foi começando a escrever mais seriamente e assinar com seu sobrenome materno, que Anna entrou para a universidade, determinada a finalizar seus estudos na área de direito. Em pouco tempo, porém, transferiu seu interesse para a história da literatura, que viria a ser de grande utilidade no seu futuro como autora.


FEMININO – SOLIDÃO – MATRIMÔNIO


Nesses primeiros anos dos seus 20 anos de idade, Anna Akhmátova ainda estava desfrutando de certo grau de respeito social. Com seu primeiro trabalho publicado aos 23 anos, Akhmátova também começou a dar seguimento ao seu lado pessoal.


Ela se casou cedo, ainda nesse período da vida, pela primeira vez. O jovem era o poeta Nikolai Gumilyov, um rapaz que tinha se aproximado dela ainda no fim da adolescência e que tentou todas as formas possíveis de chamar sua atenção.


Foi durante a lua de mel do casal, em Paris, que Anna Akhmátova começou a formar amizades que teriam valores artísticos e seriam lembradas para sempre em sua trajetória como autora e figura histórica. Nessa viagem, o casal conheceu e se aproximou do pintor Amadeo Modigliani – que chegou a fazer um desenho de Anna Akhmátova. Em teoria, foi nesse momento que ela começou a desbravar mais seu lado sexual, possivelmente tendo tido algum tipo de relação mais íntima com o pintor.


Também podemos deduzir que, inspirada – provavelmente – pelo grupo artístico que se reunia em Paris na década de 1920, Anna Akhmátova voltou a São Petersburgo com seu lado artístico ainda mais aflorado, e que esse foi o pontapé que a fez fundar uma sociedade intelectual na Rússia, ao lado de outros poetas.


O manifesto da sua oficina de escrita pregava pela volta do realismo na poesia, pedia o afastamento do excesso de melindres e metáforas muito usadas na arte escrita da época, e buscava o retorno da crueza da vida pelo ângulo da arte. E é impossível ver essa busca como algo simplório, levando em consideração as movimentações sociopolíticas que cresciam na época, na Rússia.


E foi justamente com o manifesto acmeísta que Anna Akhmátova passou a fazer algo inédito, até então, na Rússia: escrever como uma mulher. Antes dela, todas as autoras escreviam buscando se igualar aos homens, querendo mostrar que eram tão boas quanto e que mereciam o reconhecimento porque eram capazes de se fazer presente em narrativas tão potentes quanto as de seus colegas do sexo oposto. Akhmátova, por outro lado, focou esse seu trabalho inicial buscando falar da vida pelo ponto de vista feminino, expondo a solidão no nosso sexo e olhando para o eu interior com vigor.


Com sua crescente força na literatura russa, Akhmátova tentava se sentir feliz em uma relação marital que entrou por pressão de Gumilyov, enquanto encarava sua maternidade como algo que realmente amava, sem se questionar sobre a importância de seu filho em sua vida.


Em 1914 seu primeiro grande trabalho chegou ao público, chamado “Rosário” e colou a prosa poética no centro da cultura nacional, dando mais do que fama local a Akhmátova. Seu trabalho, nesse momento, precedia – sem querer – o sentimento feminino de seu tempo. As observações políticas ainda não eram o foco de seu trabalho e o destaque era para a rotina feminina e suas nuances, o que conquistou o público de imediato.


ONDE COMEÇAM AS REVOLUÇÕES


Com a aproximação do fim do seu primeiro casamento, Nicolai começou a se interessar pelo caminho militar e se candidatou como parte das forças russas durante a Primeira Guerra Mundial. E pouco depois de seu divórcio, Nikalai foi fuzilado pela polícia secreta (KGB), por ser um cidadão que se opunha à revolução que tinha crescido e vigorado.


Nesse momento da história, a Primeira Guerra já tinha eclodido entre os países europeus e a última família Romanov que governou o território russo já havia sido executada. E como um reflexo de uma história que começava a declinar, Akhmátova começou a esboçar sua insatisfação e depressão com o governo vigente em seu trabalho poético.


E vale ressaltar que, apesar de ter tido uma vida boa e ter sido uma parte da burguesia em seus tempos de juventude, muito do trabalho de Akhmátova – já naquele tempo – demonstrava certo interesse e conexão com classes mais trabalhadoras. No entanto, com o assassinato do primeiro marido e o terror de um sistema que já poderia ser visto como ditatorial, Akhmátova começou a se ressentir mais abertamente do sistema e passou a caminhar para posicionamentos mais insatisfeitos.


Fragilizada com os impactos que vinha tendo na vida pessoal e no próprio trabalho que começava a produzir, Anna Akhmátova se entrelaçou em um novo casamento. Sem dar muito tempo ao divórcio e ainda lutando contra seus demônios internos que nasciam, essa segunda relação se mostrou tóxica.


Vladimir Shileiko, seu segundo marido, parecia se ressentir do sucesso de Akhmátova, que não parava de crescer e receber destaque. E como consequência de sua inveja sobre o trabalho da esposa, ele cobrava ela para abandonar a poesia e deixar de produzir arte. Ainda assim, até o ápice do governo de Lenin e o início do governo de Stálin, Akhmátova manteve o segundo casamento.


Foi com o fim dessa segunda união que os trabalhos dela voltaram a aumentar em volume e ganharam mais espaço na crítica aberta ao estado. Seu foco era satirizar os sistemas, expor os defeitos daquela cultura e provocar a compreensão das consequências de tudo aquilo no povo. Especialmente porque, mesmo vindo de origem burguesa, Akhmátova via de perto as aflições das classes trabalhadoras, que deveriam ser protegidas e ouvidas pelo governo (afinal, esse é o conceito mais simples da ideia comunista original).


Foi com a chegada de Stálin ao poder que muitos artistas passaram a ser perseguidos de forma mais aberta, não só com represálias e censuras, mas também com prisões cada vez mais relevantes para o cenário cultural. Enquanto alguns faleceram pelas mãos do regime, outros fugiram em um autoexílio calculado ou se suicidaram. Akhmátova, por outro lado, escolheu ficar com seu povo e lutar ao seu modo pela nação que amava e acreditava ser forte. E foi nesse momento que a Segunda Guerra Mundial estourou…


A consequência de sua resistência deu muitos créditos artísticos e heróicos a Akhmátova, mas também foi o auge do seu declínio final. E essa é uma parte da história que merece espaço próprio, porque Anna Akhmátova viveu por muitos anos depois de todo o terror de guerras civis e mundiais, além das próprias aflições pessoais. Para esse momento da sua vida, escolhi seguir com a sua biografia na semana que vem, em uma segunda parte.


Anna Akhmátova, em memória, ainda não acabou.


♥ Olive Marie

Postagens mais visitadas deste blog

SRTA. AUSTEN: AS MULHERES POR TRÁS DE LENDAS

GALATEA DAS ESFERAS: A FÓRMULA FEMININA DO SUCESSO

AS DUAS FRIDAS: A ARTE SOBRE MULHERES