HILDA HILST: LITERATURA COMO OFÍCIO

 




“Você não pode pensar em português. É bom pensar em inglês, em alemão… As pessoas aceitam. Em português você pensar, é uma coisa horrível. [...]” – Hilda Hilst


Em janeiro de 2022 eu era voluntária em um site de cultura, e tive o prazer de escrever – do zero – uma matéria biográfica sobre Hilda Hilst. Escrevi sobre muitas mulheres por lá, na verdade… Mas jamais tive a chance de compartilhar sobre quando conheci cada uma dessas mulheres. E, de todas as boas histórias que tenho para contar, minha descoberta sobre Hilst é uma das mais peculiares.


No dia do meu aniversário, em 2004, minha mãe fez questão de comemorar. Éramos apenas nós e mais duas pessoas, cortando um bolo de padaria, com algumas bonecas Barbie sobre a mesa. E enquanto comíamos o bolo, minha mãe ficou sabendo da morte de Hilda Hilst.


A memória de como minha mãe soube se perdeu completamente. Não era algo que mudaria a rotina da nossa família, era apenas uma fofoca “local” e atrasada (Hilst já tinha falecido há alguns dias). Mas me lembro de perguntar quem era Hilda Hilst, e me lembro de receber a resposta de que era alguém que eu não deveria conhecer ainda.


Na segunda-feira daquela semana, perguntei sobre ela para a bibliotecária da escola. E quase instantaneamente consegui um exemplar de um livro de poesia dela. O livro era antigo já naquela época, tinha sido doado à escola pela avó de uma aluna mais velha, e apesar de não ter entendido quase nada dos seu trabalho, passei os anos seguintes relendo Hilst e tentando entender porque, afinal de contas, minha mãe não queria que eu a conhecesse ainda…


Hilda Hilst jamais saiu da minha cabeça, desde então.


A HERDEIRA DE CAFÉ, VINDA DE JAÚ


Filha de um fazendeiro de café e de uma imigrante portuguesa, Hilda nasceu em Jaú (em São Paulo), em 21 de abril de 1930. Tinha um nome longo, como todos os herdeiros de seu tempo, mas ficou em Jaú apenas até os dois anos de idade.


Com a separação dos pais, Hilda se mudou para Santos e depois para São Paulo, e passou toda a vida tendo uma educação cara. E depois de completar os estudos básicos no Colégio Santa Marcelina e no Instituto Presbiteriano Mackenzie, Hilda entrou na Universidade de São Paulo, no curso de direito, em 1948.


E como toda grande poeta, Hilda Hilst começou sua carreira cedo, na escrita, publicando seu primeiro livro de poemas aos 20 anos, enquanto ainda estava na faculdade. Desde então, quase uma vez por ano, Hilst tinha algo novo para o público. Mas foi apenas por volta dos anos 1970 que publicou algo diferente de sua obra padrão. Ainda assim, continuava obscura para o grande público, tendo pouca visão midiática.


Foi, também, nessa época de faculdade que Hilst conheceu sua grande amiga da vida toda: Lygia Fagundes Telles. As duas trocavam cartas e confidências, apoiavam o trabalho uma da outra e se uniam para reclamar e questionar o espaço feminino no mercado literário. Como melhores amigas, ficaram unidas, por quase cinco décadas, nas dores de um ofício pouco generoso com as mulheres.


CASA DO SOL, ONDE VIVEM AS CRISES


Ao se mudar para Campinas (também em São Paulo), Hilda Hilst criou um refúgio particular perfeito. Se cercou de natureza, se apaixonou pelo misticismo e se concentrou ainda mais na sua paixão pela arte. O sentimento de amor pelo cenário artístico tinha vindo do pai, com quem Hilst teve pouco contato durante a vida.


O pai de Hilda Hilst era um grande apreciador da arte – exceto a modernista –, e deixou de herança para a filha o dom de valorizar a arte ao seu redor. E com o sentimento crescendo ao passar dos anos, sua casa passou a ter um nome significativo: Casa do Sol.


E foi nesse momento que a vida da autora começou a se exibir pelas frestas de sua carreira, sem nem mesmo ser convidada. A crítica passou a se preocupar com quem era Hilda Hilst, e não com o que ela escrevia. Era sua aparência que resenhavam, não seu trabalho.


A escrizofenia do pai, sua tentativa de aproximação de Marlon Brando na Europa, seu relacionamento controverso com Vinicius de Moraes, sua vida anárquica enquanto estudava no Santa Marcelina… Tudo tragado de uma vez só, por uma mídia apaixonada por sua inadequação. O que não deu certo, porque Hilst aproveitou a onda e se usou como mercadoria midiática, ao lançar “Sete cantos do poeta, para o anjo”, onde usava sua própria vida amorosa para rir de si mesma com elegância e humor.


O RECONHECIMENTO DO DESPUDOR


Por escrever peças – e usar sua casa como palco para alunos universitários as encenarem –, Hilst começou a ganhar um espaço mais simpático da mídia e seu reconhecimento como dramaturga chegou gradativamente. Em 1969, Hilda Hilst ganhou o Prêmio Anchieta, por seu trabalho de dramaturgia.


Hilst criticava o mercado editorial nacional, apedrejava o sucesso crescente de Paulo Coelho e se envergonhava por obras alheias que se tornavam best sellers. E como um meio de provocar o mercado e se vingar, passou a escrever obras com teor pornográfico, satirizando a si mesma ao dizer que “finalmente seria lida”, ao se rebaixar para o público brasileiro.


Depois de um diagnóstico de câncer de pulmão e uma cirurgia complicada, Hilst ficou debilitada pelo resto da vida. E, em 2004, faleceu de falência múltiplas dos órgãos. A Casa do Sol, sua maior herança para além do seu trabalho literário, resistiu ao tempo e se tornou um monumento tombado.


Abrigando o museu em nome da autora, a Casa do Sol está aberta ao público e reúne amantes da arte e artistas, além de acolher excursões universitárias. Por si só, já é uma memória interessante e única de quem foi Hilda Hilst.


Apenas depois de seu falecimento, a vida e a obra da autora finalmente ganharam a merecida repercussão. Sua geração foi chamada de “Geração de 45”, que era composta por artistas que usavam sua obra para abandonar a visão de arte nacional abraçada na Semana de Arte de 22. Em vida, também foi chamada de Poeta Maldita – e recusou a classificação.


Hilda Hilst persiste. Sua memória colore o imaginário coletivo e sua carreira continua se consagrando ainda mais a cada dia que passa. Homenagens não param de surgir, e finalmente entendemos as críticas de Hilst sobre o cenário, com a leve sensação de que ela teria adorado criticar a todos nós, leitores que compartilham suas experiências nas redes sociais e autores muito abraçados pela mídia que têm baixa qualidade literária.


Olive Marie ♥

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