A CRIAÇÃO DE ADÃO: O REFLEXO PRIMÁRIO

 





“A criação de Adão” foi pintada entre 1508 e 1510, a pedido de um Papa da Igreja Católica. A obra fica no teto da Capela Sistina, dentro da residência oficial dos Papas. E apesar de ser parte de um imenso mural, que cobre todo o teto da Capela, ficou famosa sozinha.


Feita por Michelangelo, a pintura entrou para a cultura pop de forma irrevogável, mas foi apenas nos anos 1990 que o cunho crítico da obra veio a público de forma mais enfática. Afinal, foi nesse momento da história que alguém notou que Deus estava dentro de um manto em formato de cérebro.


O mais curioso sobre isso é que Michelangelo era um artista do Renascimento, ou seja, ele fazia suas obras baseado na ideia de que o homem é o centro do mundo e que tudo se resolve cientificamente. Para a Igreja, diferente da vanguarda artística na época, Deus é quem dá ao homem o dom do pensamento.


Entre idas e vindas de ambos os pontos de vista, seja Deus criando o homem ou o homem criando Deus, é fato que a obra parece mesmo uma crítica bem disfarçada e calculada. Mas meu ponto, hoje, não é sobre isso.


O HOMEM QUE CRIOU DEUS


Eu não sou cristã, e isso precisa ser visto e compreendido antes que o texto siga. E quando digo que não sou cristã, estou dizendo que não sigo nenhum pensamento vindo da Bíblia. Desconsidero datas comemorativas da Igreja com seus simbolismos religiosos, renego que o Natal seja o aniversário de Jesus e não vejo sinceridade em mais da metade dos líderes religiosos (em pequena ou grande escala) de qualquer religião que seja.


Curiosamente, toda a minha família é religiosa de alguma forma. E mesmo que eu seja religiosa, não sigo religiões tradicionais, conceitos machistas dentro desses contextos e – por ter sido criada dentro da Igreja Católica e de colégios de freiras –, reconheço que é mais fácil achar uma versão razoável de Deus fora de religiões tradicionais do que dentro.


Ainda assim, acho que fé é um consolo para quem a pratica, seja dentro ou fora de igrejas. E acho que casos de abusos relacionados a qualquer tipo de religião é sempre sobre pessoas e não sobre sentimentos pessoais e/ou coletivos sobre a figura suprema de uma entidade divina. E o assunto se prolonga…


Mas de modo geral, sou apaixonada pela ideia de que foi o homem quem criou Deus. Afinal, mesmo que exista uma figura masculina divina que mande em tudo como o cristianismo e religiões tradicionais e ortodoxas pregam, e é essa entidade que supostamente nos dá sabedoria e racionalidade, por que não seria uma visão pessoal humana que Deus se parece com o ser humano?


“Deus fez do homem sua imagem e semelhança”... É, mas teoricamente Deus também está em todas as coisas, em especial, está na natureza. Me parece prepotência deduzir que existe um Deus que está em todas as coisas, mas que valoriza mais o ser humano. Algo me diz que, se os macacos estivessem a fim de verbalizar sua racionalidade quase humana, Deus ia ter pelos no corpo todo, se pendurar em nuvens verticais e sorriria com dentes amarelados e pontudos.


O REFLEXO INICIAL DA CONVERSA


Levando em consideração que ofendi metade das pessoas que conheço – e as que não conheço também –, com o gracejo sobre o Deus dos macacos, preciso entrar na questão de como esse debate é que foi o responsável por tornar “A criação de Adão” uma das obras mais famosas da história da arte, da história do mundo e da cultura pop.


A própria criação da obra em si já é uma crítica bem estruturada, esperando pacientemente para o desfecho final. A Igreja contratou um artista renascentista para pintar o teto de uma de suas capelas mais importantes… De duas uma: ou o Papa queria ser debochado ao obrigar um artista renascentista a pintar Deus como centro do Universo, ou Michelangelo riu muito da piadoca de colocar o todo-poderoso Deus dentro de um cérebro. Alguém aí foi debochado e, com certeza, não alcançou o respectivo paraíso pós-morte que acreditava.


Mas esse é só o começo… A arte, de um modo geral, não foi criada para Deus. E tudo bem. Ninguém quer ficar “adorando” quando visita um Museu, vai em um show do artista preferido ou lê um livro que não esteja falando sobre a jornada de herói de um cara que, spoiler milenar, foi torturado e morto e todo mundo já sabe o final.


Não. A arte não foi feita para Deus. Mas ter Deus na arte é um reflexo primário da nossa expectativa pessoal sobre mais. A vida, em si, já é dura demais. Acreditar em alguma coisa, mesmo que seja na unanimidade do bem e do mal, faz parte. Reflete algo mais animalesco em nós, como sociedade, e isso é bom (a menos que você seja crente, aí não é nada bom e meu respeito por você é mínimo).


MICHELANGELO, DEUS E EU


Esse é, antes de qualquer coisa, um texto sobre mim. Escolhi escrever sobre “A criação de Adão” porque muitas coisas têm me feito pensar em fé nesse fim de ano. Deus, como criado pelas religiões tradicionais, não é uma questão para mim. Eu apenas não acredito Nele e ponto. Respeito Seu nome e sua figura pelos termos gramaticais e pela norma culta, o aceito em rituais religiosos como casamentos e batismos em nome de pessoas que amo, mas Ele não é uma questão para mim.


Michelangelo, por outro lado…


Me lembro de como conheci artista e obra sem precisar consultar meus diários infantis. Eu estava na casa da minha tia, minha prima estava no primeiro ano do Ensino Médio e era a primeira vez na vida que ela estudava em uma escola não religiosa, e como toda boa cria perturbada de família viciada na fé, escolheu “A criação de Adão” como seu trabalho de arte na primeira semana de aula para “evangelizar seus colegas não doutrinados”.


Enquanto uma versão adolescente da minha prima recortava imagens recém impressas da pintura assistindo “Malhação”, eu lia sobre Michelangelo no livro de arte que ela tinha pegado emprestado da biblioteca. Michelangelo e sua obra de duplo sentido filosófico me instigava sobre o sincretismo religioso da minha própria família, minha falta de pertencimento dentro da mesma família religiosamente opressora e arte e ciência.


Falar sobre esses temas com uma amiga me fez voltar para essa obra. Estou tentando desvendar qual o meu reflexo primário entre adoração pela obra e sua crítica implícita, e repulsa pela ideia de que essa perfeição da arte só existe porque foi necessário um livro, um coletivo social e anos de terror governamental baseado na religião. Michelangelo, como artista da Capela Sistina, me fascina e aterroriza em níveis igualitários de emoção.


Talvez nosso reflexo primário seja o mesmo de Michelangelo: a busca impossível pelo equilíbrio da fé e da razão. Eu, como ser individual, escolho não ter o equilíbrio esperado, e me permito ver a beleza no que merece, seja arte ou pessoas.


Olive Marie ♥