MONUMENT VALLEY 2: A MISSÃO MATERNAL

 




Descobri que “Monument Valley” tinha uma sequência quando vi a propaganda dos jogos pelas abas de divulgação da Netflix nas redes sociais. Fiquei, instantaneamente, empolgada.


A proposta ainda é a mesma: reconstruir um mundo colorido e com baixos estímulos, encaixando os cenários em um quebra-cabeça fofinho dividido em fases. Mas a história agora é outra… As protagonistas são uma mãe e uma filha em busca de respostas e conexões entre si. E isso, por si só, nos coloca um cenário peculiar para os dias de hoje…


O conceito de existência feminina é relativamente novo, porque antes as mulheres eram vistas como um complemento objetificado do homem e de sua linhagem, primeiro como filha obediente que servia como um tipo de moeda de troca para bens e conexões comerciais, depois como esposa fiel e caseira, pronta para estabelecer padrões de beleza e honraria ao seu homem. E, por fim, como mãe que perpetua a genética paterna e avó que serve de base de apoio para os netos em crescimento. E é óbvio que, com o tempo, a intensidade de cada um desses papéis melhorou ou piorou dentro da cultura na qual a mulher estava inserida, mas ter liberdade suficiente para ser algo além disso é bem recente. E isso melhorou também as percepções de maternidade de mulheres também. 


“Monument Valley 2” reforça essa teoria e melhora a exemplificação da obra. Tudo em um ponto de vista só. 


A MÃE, A FILHA E A MULHER


Nesse novo momento do jogo, o foco é uma missão dupla, em que mãe e filha se separam para reconstruir os cenários ao redor de si, passando de uma narrativa a outra e explorando a ideia de amadurecer, deixar ir e melhorar a relação. Mesmo com poucas ou nenhuma interação direta entre elas durante as fases do jogo.


Quando a mãe passa seu papel de figura feminina madura para sua filha, algumas coisas acontecem… No crescimento cis, por exemplo, alguns rituais são padronizados e seguidos por séculos de gerações. Entre eles, a conversa sobre menstruação, virgindade, gravidez e até mesmo a compra do primeiro sutiã. Quase como uma tradição a ser respeitada. Mas nem tudo são flores…


Ao debater com a filha sobre seu papel na sociedade, alguns discursos tendenciosos surgem: dever. Ou o dever de cumprir a tradição e se casar e se tornar mãe, ou o dever de quebrar o ciclo e se tornar uma mulher independente e poderosa no mercado de trabalho. O jogo segue quase o mesmo padrão, mas com um discurso diferente.


A mãe espera, de longe, a filha viver a própria vida para voltar para ela e a contar sobre suas própria experiências, enquanto prova seu valor ao cumprir, sozinha, seus deveres pessoais de reconstruir aqueles cenários ao seu redor. Mas o fim da história é óbvio e sem grandes impactos: sua missão era, no fim das contas, reencontrar o colo materno e entender sua existência como mulher apesar de sua mãe, mas ainda assim um fruto dela.


O REENCONTRO


Com o processo digital de tornar tudo um produto e um conteúdo, há algo de novo na ideia de lidar com a família. Afinal, questões pessoais de famílias se tornaram armas na dicção social e diagnósticos pré-definidos de sintomas tóxicos. Mas, às vezes, uma família é apenas uma família e nem toda briga é sinal de disfunção familiar, mas sim um leve desencontro de ideias.


Para além disso, discursos sobre a “essência feminina” e ciclos familiares passaram a ser discutidos de formas diversas e, de vez em quando, bem burras ou exageradas. O plano é comprar seu tempo e te sugerir soluções. Mas eis a grande descoberta da coisa: a solução para não ter uma família disfuncional, é não ter uma família.


Isso aprofunda mais o debate…


Porém, relações maternais são mais complexas em grau e espécie. Ponto. Porque maternar é algo maior. Vai além do gerar e nutrir, vai além do colocar no mundo e abandonar ou criar. Vai além do além que se pode imaginar. E repetir, como mulheres, os erros das nossas mães é apenas parte do processo grotesco de envelhecer.


Quanto mais queremos nos afastar, mais nos parecemos com aquelas mães que achamos que não deveríamos nos espelhar. E eis aí o reencontro! Antes de nos encontrarmos com elas em paz, seja física ou emocionalmente, nos reencontramos com nossas mães em ciclos viciosos de comportamentos nem tão bons, ideias e ideais programados em nós pelo subconsciente do berço e pelo próprio conceito de “é andando sempre para frente que se volta ao mesmo lugar”.


O FIM DAS CONTAS 


Temos sempre que pensar que a vida da mulher acontece em ciclos bem explícitos. E mesmo que a modernidade tenha dissolvido esses ciclos aos poucos, as coisas ainda são assim, e aqueles mesmos rituais que temos se repetem de formas diversas. E é normal.


Na fase adulta, começamos a somar a vida por méritos com base na idade, porque sabemos que há prazos de validade são reais em corpos femininos. Independente de serem cis ou não. Porque ser mulher é ter prazos, afinal, a sociedade segue sem atualizar essas observações sobre corpos femininos.


No processo, entendemos que precisamos voltar para as raízes de nossas mães para entender e melhorar nossa construção como mulheres, como indivíduos e como sociedade. A missão maternal ganha outros panoramas, saindo do ponto de nos observar de longe para finalmente nos receber em seus braços — sejam eles físicos ou metafóricos —, para finalmente termos paz como seres humanos. Especialmente quando precisamos dessa paz em corpos femininos, por isso, talvez, a existência de uma mãe e uma filha no jogo.


“Monument Valley 2” cria esse ciclo emocional de compreensão, crescimento e redenção, e abre margem para explorarmos nossas próprias questões com isso. Tudo em um ritmo que faz sentido, mas de forma metafórica e não direta, criando pontos de exploração da consciência pessoal enquanto os quebra-cabeças vão se montando.


Olive Marie ♥