O CASTELO ANIMADO: UM DIÁLOGO COM TODOS OS PÚBLICOS

 


Pensei em muitas formas de começar esse texto, puxando os mais diversos pontos sobre o filme… Poderia começar, por exemplo, falando que o filme vai completar vinte anos esse ano, porque apesar de ter sido lançado no Brasil apenas em 2005, sua estreia original foi em 2004.


Também poderia começar dizendo que assisti a esse filme, pela primeira vez, em 2006 e que fiquei apaixonada. E que a culpa de amar tanto as produções de Hayao Miyazaki é de uma professora de inglês, que me fez apaixonar por “A viagem de Chihiro”. E com o falecimento dela, no último ano, o apego emocional só ficou maior.


E também poderia começar falando sobre como o longa é inspirado em um livro de uma autora inglesa, e que eu ganhei esse livro há dois dias, no meu aniversário. Surpreendentemente, meu aniversário de vinte e sete anos, bem no ano de aniversário de vinte anos do filme. E poderia dizer como isso parece um tipo de piada do destino, só para me lembrar que a vida é feita de coincidências divertidas e que podemos sempre esperar certo grau de simetria em tudo nessa vida.


Só que decidi contrariar tudo de mais peculiar que poderia dizer sobre, e correr para um contexto mais amplo, porque o que me fez decidir escrever sobre foi um vídeo que vi essa semana, no Instagram. E o mais interessante é que o vídeo era sobre moda, mas me fez pensar em cultura… Nossas referências, mesmo distantes, podem nos levar a lugares próximos e nos fazer chegar ao mesmo lugar: a importância do filme para um amadurecimento honesto.


SOPHIE E HOWL: O MELHOR CASAL DE MIYAZAKI


“O castelo animado” é meu filme preferido do Studio Ghibli, assim como também é minha animação preferida da vida. Simplesmente porque ela tem todos os pré-requisitos… Tem romance, tem magia, tem lindíssimas ilustrações, tem uma mensagem sincera e, mais importante para o universo de animações: é em 2D.


A história em si, pela visão da obra, é sobre uma garota que se mantém quase como uma reclusa na chapelaria da família, sempre muito modesta e pouco comunicativa. Enquanto isso, Howl é um mago poderoso que vive em um castelo que caminha por diversos lugares. O que Sophie tem de simples, Howl tem de espalhafatoso. Enquanto ela é honesta, ele é misterioso. Sophie também não parece a mais bonita, e Howl é considerado um deus da beleza.


No meu ponto de vista (e essa é uma opinião completamente particular), esse é o melhor casal de toda a filmografia do estúdio. E não só porque suas personalidades parecem clichês, mas porque Hayao Miyazaki conseguiu, com a sua equipe, algo que poucas adaptações conseguem: ele reinventou toda uma trama.


Mesmo que a história do filme siga a original e que as personagens sejam muito baseadas na obra de Diana Wynne Jones, Howl ficou muito mais charmoso e menos mimado, Sophie ficou imensamente mais real. Tudo ganhou uma aura diferente e fez a história original ficar ainda mais mágica. E isso, eu garanto, poucas adaptações conseguem fazer.


Nessa versão da história, vemos ambos por um ângulo de crescimento pessoal e emocional, além de enxergarmos melhor suas qualidades e seus defeitos, e aprendemos a controlar nossos sentimentos sobre eles de uma forma mais limpa. Isso os coloca em uma posição que poucos casais de animações conseguem, porque seus romances, na maioria das vezes, são simplórios e pouco complexos. “O castelo animado” de Miyazaki cria uma versão de romance que, apesar de inocente e pueril, tem toda a profundidade emocional que histórias infantis deveriam ter, para que mentes jovens já fossem treinadas a aceitar e a reconhecer sintomas de sentimentos que parecem adultos demais, mas que são apenas humanos.


Outro ponto sobre a história de “O castelo animado” pelas mãos do Studio Ghibli, é que a obra foca em dar responsabilidades para a Sophie que tiram o clichê da garota silenciosa que encontra o amor. Ela aprende sobre si mesma, e mesmo quando está se apaixonando pelo Howl, seu foco ainda é descobrir como se livrar da maldição que foi condenada, porque o Howl não é seu foco principal. Isso, por si só, já nos lembra de algumas das principais essências dos roteiros de Miyazaki, que sempre se importa em criar protagonistas femininas que sejam fortes e destemidas.


O CASTELO VESTE PRADA


O vídeo que me inspirou a escrever esse texto abordou outro ponto da perspectiva de ideal da obra. E o ponto do debate era moda.


A moça argumentou que a história do filme também pode ser contada pelo ponto de vista do vestuário de suas personagens. Afinal, quando a história começa, a Sophie se veste de maneira extremamente modesta e suave, e também afirma que é velha demais para a sua idade.


Em comparação com sua mãe e irmã, que são mais tendenciosas ao vestiário das últimas modas e que se importam com aparência, a Sophie é uma mulher mais preocupada com a simplicidade da vida e que aprecia prazeres e gostos menos usuais para o seu estilo de vida, como o trabalho incessante e um círculo social de baixa manutenção.


Pensando nisso, em quase todo o filme, a roupa que acompanha a Sophie é um vestido azul que se adequa a ela independente do corpo que ela tenha no momento, afinal, sua maldição a faz ter algumas variações de aparência de acordo com as coisas que aprende sobre si mesma. O Howl, por outro lado, tem dois visuais muito distintos, sendo um mais imponente e chamativo (a forma que ele se mostra ao mundo) e um mais simples e humilde (como ele é de verdade).


Vou me atrever a estender essa visão dela até para o resto das pessoas representadas na obra, como o pequeno Markl, que é um menino respondão que, quando precisa se mostrar ao mundo, assume um papel caricato de um mago idoso e sábio por meio de uma artimanha mágica. A ideia é dizer que a roupa mostra quem somos para o mundo e que essa teoria pode ser aplicada em muitos casos, mas nesse filme, a ideia é realmente especial.


Descrever personagens e suas trajetórias por suas roupas é realmente curioso, e também é a cara de Miyazaki. Porque é importante, para ele, mostrar quem são aquelas figuras caricatas por quem estamos nos apaixonando. Se suas histórias falam de sentimentos, por que suas figuras não deveriam se vestir como sentimentos?


O vestido azul de Sophie é uma referência lógica, é claro, a sua forma de pensar e demonstra a sua perseverança. Ela é uma pessoa prática, que precisa de muito pouco para viver, que acumula raciocínios lógicos e não coisas. Ela é fã do simples e do comum, gosta de sumir na multidão e mostra o que realmente é: uma pessoa jovem com uma alma velha e com uma obstinação incansável.


Howl é um homem exuberante, que busca conforto e certo luxo, e que usa sua aparência para esconder suas fragilidades e humildades. Em um contexto pouco mágico, talvez ele fosse aquele protagonista de origem pobre que esquece de onde veio e tenta pregar como um político enriquecido. Um Gatsby de seu tempo. Nesse contexto, Howl e Sophie são como Emily e Andy, tentando ir contra os princípios da guerra de seu país, enquanto as outras duas iam contra a chefe insana que desprezava pessoas simples e pouco informadas, apesar de politizadas.


DO OCIDENTE AO ORIENTE


Curiosamente, enquanto via o vídeo da moça, notei uma outra coisa sobre a versão de Miyazaki: Howl, gradualmente, se torna uma figura mais asiática.


Quando vemos trends de moda e de make indo e vindo, e agora com mais velocidade por culpa das redes sociais, entendemos que nossas percepções sobre vida e estruturas estão sempre mudando. E, como o mundo vai mesmo acabar, temos tentando recuperar aparências mais nostálgicas do que antes.


A aparência dos anos 1970 e 1990 têm se misturado nesse início de 2024. Há alguns anos, com a estreia de “Stranger Things”, a moda foi resgatar filmes e músicas dos anos 1980. Enquanto isso, influencers como a Hailey Bieber, “criam” verdadeiras ondas de consumo na indústria dos cosméticos e maquiagens com tipos de peles e sombras com nomes inspirados em comidas.


Mas tem outra moda surgindo nas nossas redes sociais e nós nem vimos chegar: a exaltação da beleza ideal e da imagem, completamente importadas da Ásia.


Para além de BTS e kdramas, a cultura asiática tem ganhado força no Ocidente em um ritmo extremamente acelerado, nos fazendo consumir seus produtos de pele, aderir a suas modas e consumir ainda mais seu estilo de vida. E como tudo na vida: existem prós e existem contras.


A ideia aqui é mostrar que o Miyazaki nos deu essa previsão isso há vinte anos… O Howl do começo do filme é loiro e extravagante, com vários nomes entre os povos que circula e com muita essência superficial, baseada na visão do público sobre si mesmo. O Howl do fim do filme é um homem que se parece muito mais com um asiático, e que passa a valorizar a família que construiu e a nutrir suas forças de sua própria ancestralidade.


Eu sei! A Ásia é mil vezes mais consumidora de um estilo de vida baseado em aparência, mas a Ásia também é responsável por uma cultura muito mais tradicional e valorosa sobre seus antepassados e sobre suas origens. E o curioso é que, atualmente, o mundo se tornou o Howl.


Em virais nas redes sociais, temos passado a seguir pessoas que criam conteúdos humanizados e divertidos sobre suas famílias, alguns com seus avós sendo o centro das atenções e conquistando sucesso. Aprendemos, gradualmente, a valorizar aquelas pessoas que deixávamos em casa para seguir a vida. E mesmo que essa não seja a regra, o Ocidente se materializou em uma cultura de valorização do “industrial” sobre os valores pessoais.


Veja só, não estou falando de termos politizados sobre as horas de trabalho na Ásia, nem supervalorizando ou romantizando seus pontos negativos. Estou dizendo que temos aprendido, gradualmente, sobre como olharmos para nós como uma linhagem e não como seres isolados. Até nossos padrões de beleza têm se multiplicado e símbolos de referências asiáticas têm conquistado espaços de marketing junto com corpos pretos, nativos e transacionados. Nós nos tornamos o Howl, e mudamos os loiros pelos morenos, os azuis pelos castanhos, e fomos ensinados a nos valorizar.


E sendo sincera: eu adoro ser o Howl. Me sinto verdadeiramente viva.


♥ Olive Marie

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