GILMORE GIRLS: COMO FAMÍLIAS EXISTEM EM CICLOS

 




Quando eu era criança, “Gilmore Girls” passava na TV aberta aos fins de semana. Não sei exatamente o canal, não me lembro do horário, mas tenho memórias bem claras de escutar meu genitor dizer que quando eu crescesse, seria a Rory. Minha mãe já era parecida demais com a Lorelai (mais pelo jeito do que pelas situações), e essa virou nossa referência familiar. Nós éramos as garotas Gilmore.


Sem nenhuma pressão, gradualmente fomos mesmo nos tornando Lorelai e Rory. Um pouco mais a cada dia… Minha mãe tomava cada vez mais café, eu lia ainda mais livros; ela se transformava ainda mais no esteio de toda uma família pessoal complicada, eu me tornava cada vez mais silenciosa e crítica. Foi sem perceber, mas aconteceu.


Os episódios aos fins de semana na televisão aberta acabaram rápido. Desse modo os episódios não eram lineares, e mesmo lembrando remotamente do enredo geral, “Gilmore Girls” nunca foi nossa brincadeira pessoal. Até assistirmos toda a série, na primeira oportunidade que surgiu, pela primeira vez de forma linear. E estava tudo lá!


Claro que não somos exatamente como Lorelai e Rory, mas somos muito delas. Assim como, assustadoramente, minha mãe foi criada em um lar controlador, opressivo, tradicional e um tanto narcisista. Até o vitimismo de Emily está aqui, presente como um veneno assassino. E isso me fez notar algumas coisas…


EMILY GILMORE: ONDE NASCEM TODAS AS MULHERES CLÁSSICAS


Sabemos que o século passado foi tradicional e pouco questionador até os anos 50, mais ou menos. A juventude não se rebelava, não havia brigas familiares sobre direitos das mulheres dentro dos lares e o pensamento tradicional crescia a cada dia mais. Assustadoramente, em graus maiores ou menores de riqueza, todas as nossas avós são meio como Emily Gilmore.


Prezam pelos bons costumes, assumem posições religiosas sobre rotina e classe, entendem a sociedade como uma oligarquia financeira permanente e desprezam qualquer tipo de sombra de rebeldia.


Nossas mães, nascidas entre os anos 1960 e 1980 (para uma galera mais nova que eu), se rebelaram contra seus lares massivamente opressivos. Dificilmente vemos mulheres nascidas entre esses 20 anos do século XX se portando como tradicionais ou opressoras.


A maioria reclama de lares problemáticos, complexos demais e desesperadores. A maioria só queria fugir uns minutinhos de suas próprias famílias. A maioria engravidou na adolescência, teve empregos mais bem remunerados, explorou possibilidade nunca antes vistas por todas as gerações de suas mães, e se tornaram mães com a expectativa de não cometerem os mesmos erros familiares em que viveram em suas infâncias.


Então nós, nascidas entre 1990 e 2001 (estourando muito), nos tornamos misturas perfeitas de nossas mães e nossas avós. E isso assusta demais!


LORELAI GILMORE: UM PONTO DE RUPTURA


Nos episódios em que Lorelai interage com sua avó paterna, também chamada Lorelai, ela nota a raiva e a insatisfação de sua mãe com a sogra. E em momento nenhum ela é capaz de revidar os ataques maternos, contando que é exatamente assim que se sente quando Emily a apedreja verbal e emocionalmente.


Mesmo assim, foi Lorelai quem fugiu de casa e criou uma vida nova. Foi Lorelai quem buscou ser diferente e rompeu tradições arcaicas, modos retrógrados e pensamentos elitistas e nublados. Ela transformou seu lar em um refúgio para a própria filha, e focou em deixar claro para a Rory que seu lar deveria ser isso: um lar.


Por mais que eu ache a Lorelai insustentável em determinados momentos, é inquestionável que ela foi um ponto de ruptura para as histórias contadas em seu tempo.


Ela era uma novidade na televisão. E não por sua situação de vida, mas por sua total intolerância com a subserviência familiar. Afinal, antes de Lorelai, papéis assim eram mostrados em outro tom de discussão, e as famílias sempre acabavam vencendo o anarquismo pessoal dessas figuras.


Claramente ela não é perfeita. Também não é a maior inovação na televisão, mas rompeu muito do padrão que até então se via em mulheres com histórias de vida parecidas com a dela na televisão. E Rory era seu ponto de impacto. Isso porque Rory era quase como Emily, mas Lorelai não se ressentia dela e não procurava provocá-la.


E mesmo que Rory tenha nascido para ser meiga, estudiosa e questionadora, metade do público a despreza. Seja em uma temporada apenas, ou pelo resto da série.


RORY GILMORE: ANARQUIA FEMININA CONTROLADA E GENÉTICA


“Gilmore Girls” é uma série matriarcal. É feita para debater relações maternais, e Rory é esse ponto de impacto no contexto geral da obra. Afinal, todas as outras relações maternais do roteiro são extremas.


Emily e Lorelai são completos opostos. Assim como Lane e a senhora Kim. Paris nem mesmo vê ou fala com a mãe, e abriu mão da própria maternidade em prol de uma carreira brilhante, enquanto vê seus filhos apenas quando volta do trabalho. As Gilmore são as únicas que, a longo prazo, são vistas em trio.


Ao analisarmos de perto, entendemos o que amamos em Rory: o espírito livre e curioso de Lorelai. Ela herdou da mãe, além dos olhos e do amor por café, a apreciação por pontos de vista amplos sobre a sociedade e adora o estilo de vida moderno e autônomo. E o que odiamos em Rory é o que ela herdou de Emily: o senso de controle absoluto, a rigidez com regras (muitas vezes estúpidas) e a fascinação pela coerência educacional e linear.


O que Emily amava em Rory era sua semelhança com ela, e o que odiava era sua semelhança com Lorelai. E o que Lorelai amava na filha, era seu reflexo, e o que odiava era a visão de sua mãe mais nova e mais determinada em enfrentá-la como uma igual.


Rory era uma anarquista controlada, assim como era uma tradicionalista genética. Ela não podia controlar esses traços em si mesma. E nem tentava.


É interessante pensar que, se Rory tivesse tido uma filha (durante as sete temporadas originais), essa menina nasceria mais Lorelai do que Rory. E isso deixaria Lorelai orgulhosa, enquanto transformaria a vida de Rory em um caos absoluto.


Famílias são cíclicas. E não por mapas familiares, mas porque são reflexos de tudo que não podemos evitar em outros seres humanos. A genética está aí, mas os fundamentos por observação também. E isso pode ser nossa maior alegria ou nossa maior ruína. Basta pensar com cuidado sobre o tema…


No fim das contas, “Gilmore Girls” não é apenas sobre as Gilmore. É uma história sobre famílias e suas excentricidades, e também é uma lição sobre como devemos encarar as coisas de frente, para engolir os ciclos familiares em que nascemos, antes de sermos completamente tragados por eles.


Olive Marie ♥

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