BEETLEJUICE: O DOM DE RECONTAR HISTÓRIAS

 




Em 1988 o filme “Beetlejuice” foi um dos primeiros filmes de Tim Burton a ter uma estética sombria, e isso fez da sua carreira algo épico. Simplesmente porque somos incapazes de olhar para algo estranho e não pensar automaticamente em Tim Burton. A assinatura dele nesse tipo de obra reforça um lado interessante para aspectos sombrios.


Curiosamente, “Beetlejuice” foi – entre muitas aspas – reescrito por Burton. Isso porque, originalmente, a história era de terror e ponto. E podemos ver isso com as referências não apenas ao sobrenatural, mas ao próprio comportamento do Beetlejuice e a presença do time de futebol americano da Universidade Marshall.


A presença de Michael Keaton deu ao filme um tom de humor, mas o roteiro original contava com a busca de Beetlejuice para abusar de Lydia, assim como um final trágico em que ela morreria e passaria a assombrar a casa junto com Adam e Barbara. Mas com o tom de humor colocado por Keaton e o sombrio “fofinho” assinado por Burton, uma tradição começou nas obras dele.


HISTÓRIAS ANTES DE ROTEIROS


Todo mundo sabe que é necessário inspiração para uma história nascer. Também sabemos, unanimemente, que roteiros, muitas vezes, nascem antes como histórias soltas. E na carreira inteira do Tim Burton a coisa veio daí.


“A noiva cadáver” é um conto russo-judaico que inspirou um roteiro bonitinho. “Alice no País das Maravilhas” é uma história infantil da Era Vitoriana. “Ed Wood” e “Grandes Olhos” são ficções biográficas. “Sombras da noite” teve o roteiro baseado em uma série de televisão antiga. E etc, etc e etc. Tim Burton, geralmente, assume direções de roteiros vindos de histórias sombrias. Ele reconta obras.


O divertido de sua filmografia é que a maioria de seus roteiros brincam com o horror dentro do humor. Todos os filmes contam com personagens divertidos, abordagens interessantes e um horror mais leve, nada gore e que usa pontos de luz para contrapor cenas densas.


A arte de contar histórias é peculiar, em especial quando pensamos no cinema, porque tudo precisa de um tempo. É necessário saber evoluir as narrativas de jeitos inteligentes, assim como é necessário saber contar histórias de outras pessoas – culturas, religiões, tempos – com elegância e respeito pelo que já existe. E Burton tem essa arte em si, sempre escolhendo a equipe perfeita para criar o que precisa ser criado por cima de algo que já conhecemos. Ele, melhor do que ninguém, parece contar as histórias que nasceram antes dos roteiros, e isso precisa ser pensado por novos ângulos.


TODO AQUELE HUMOR QUEBRADO


Enquanto escrevo sobre Tim Burton e “Beetlejuice”, me recordo de outras obras que mesclam humor e terror, como “A família Addams”, por exemplo. E isso me faz entender que desde os anos 1980, o terror ganhou essa nova subcategoria.


O nosso humor quebrado deu espaço para pessoas como Tim Burton contar histórias. E que bom que fomos capazes disso. Realmente, a maioria dessas histórias valem a pena. Em especial porque conseguem brincar com a nossa própria realidade.


“Beetlejuice” é um bom exemplo disso. Debocha de artistas independentes que são obscuros no mercado por causa da falta de compreensão, isola pensamentos depressivos como a necessidade primordial de famílias estabilizadas emocionalmente, satiriza o sobrenatural como algo que pode ou não existir (e quais as verdades possíveis por trás do sim), e ainda relembra que qualquer atividade paranormal que pareça maligna, definitivamente, não é obra do tal do Capeta cristão.


Foram essas margens de exploração que deram a Burton a chance de ter um sucesso entre as gerações que cresciam entre 1980 e 2000. O humor quebrado de suas obras, a acidez sutil de seus trabalhos e a capacidade de colocar algo novo sobre perspectivas que sabemos de cor, fez de Tim Burton alguém que queremos correr o risco de gastar uma grana em cinemas, só para ver o que vem pela frente.


BEETLEJUICE, BEETLEJUICE, BEETLEJUICE


Com metade do elenco original, a direção de Burton e uma legião de fãs apaixonados pela história de 1988, a sequência de “Beetlejuice” finalmente chegou aos cinemas. E enquanto todos correm para os cinemas para saber se vale o risco, me recuso a entrar nessa onda.


Essa nova história não é uma que vou gastar meu dinheiro para assistir. E o preconceito absoluto vem por causa das sequências. Não gosto de sequências de um modo geral, e particularmente sempre amei o fato de os filmes de Burton serem únicos.


Acredito que certos trabalhos merecem a solidão de um sucesso absoluto, ao invés da reinvenção de histórias que já foram contadas novamente. A possibilidade do erro me atormenta, a ideia de sequências que são capazes de estragar boas histórias me deixa sem ação. E sinto que essa é uma das histórias que se sustenta tão bem sozinha, que por melhor que seja sua sequência, vou me decepcionar igualmente.


O dom de recontar histórias precisa ser alimentado da forma adequada, e a verdade disso surge até em séries que ainda estão em produção. A lógica é simples: precisamos saber quando parar. E precisamos aprender que nem tudo precisa ser refeito. E, se o for, que seja de maneira inteligente.


“Beetlejuice” já reconta uma história. Fala sobre espiritismo, sobre luto, sobre saúde mental e sobre valorização da simplicidade da vida. Também nos dá um tipo de Coringa obsceno, e satiriza a versão masculina em sua tríplice “do homem de bem”: mulherengo, muquirana e pregador do ideal paternal. A ironia, por si, já vem na necessidade de dizer três vezes o mesmo nome.


Mesmo que a ideia não seja essa, na vida adulta é o que entendemos em um roteiro tão bem elaborado. Recontar histórias é um dom para poucos, e o primeiro “Beetlejuice” já recontou várias delas de forma inteligente.


Olive Marie ♥