SAKURA CARD CAPTORS: MANGÁS DE FORMAÇÃO

 



“Sakura Card Captors” pode não ter sido um grande sucesso de audiência e nem ser o anime preferido das pessoas de um modo geral, mas eu amo cada um dos episódios. Amo o contexto familiar da Sakura, a ideia de sexualidade na adolescência e como isso é aplicado de forma suave, e com certeza amo a leveza das piadinhas e das brincadeiras e de como o roteiro envelhece, ora bem ora mal.


Sakura descobre um livro que guarda um baralho mágico. Esse baralho foi criado pelo mago Clow, e cada uma dessas cartas tem uma função específica. E mesmo que nem todas as cartas sejam lá muito úteis, no fim de cada episódio uma história diferente foi contada.


Vindo do mangá de mesmo nome, o desenho passava na TV aberta quando eu era criança e marcou a minha vida porque fazia sentido naquele momento, tinha roupas lindas e Sakura era uma garota que amava ser uma garota. E esse tem sido, talvez, o único motivo que me fez ser quem sou hoje (sobre amar ser uma garota).


ROMANCES DE FORMAÇÃO


Os romances de formação consistem em histórias em que a figura protagonista evolui durante a obra. E entre os mais famosos – e clássicos – temos os livros de Jane Austen, de Charlotte Brontë e Louisa May Alcott. Assim como no presente encontramos obras de André Aciman, Elena Ferrante e Stephen Chbosky.


O plano de uma história assim, é mostrar como o protagonista da obra é capaz de se moldar e amadurecer, seja física, psicológica ou emocionalmente. Ou todas as três opções juntas. E como esse é um jeito comum de contar histórias – porque a vida é assim, afinal –, a prática também é comum em histórias orientais.


Entre os animes e os mangás, alguns protagonistas dos mais famosos passam pela formação diante do público. E, possivelmente, as obras de Hayao Miyazaki sejam as mais famosas a fazer isso, vindas do continente asiático para o ocidente, os filmes do diretor japonês não se intimida em se provar belas obras de arte, com bons heróis – e em maioria: heroínas – em formação.


Mas o que quase ninguém percebe é que Sakura está entre essas histórias, afinal, por mais bobinhos que sejam seus roteiros, a trama segue seu protagonismo enquanto ela descobre o primeiro amor, atravessa a adolescência e amadurece de forma gradual. Sakura está em formação, e isso jamais é escondido na história.


COMO CARTAS CONTAM HISTÓRIAS


Sempre que tento explicar a evolução de Sakura pelos episódios, caio em uma mesmice de tentar ligar os fatos em ordem cronológica, com descobertas emocionais pessoais da Sakura… Como ela ganha coragem, interpretação pessoal e autoestima durante a história toda. Mas talvez seja mais fácil explicar isso pelas cartas…


Para começar por um exemplo bem simplório, temos um dos primeiros episódios, em que Sakura está em uma visita escolar ao aquário da cidade e então um incidente acontece: a água de um dos tanques quase afoga uma treinadora de pinguins e um dos pinguins. Em uma segunda visita (ainda no mesmo episódio), Sakura vai ao aquário na companhia de Yukito. Para ela aquilo é um encontro, mas para ele é apenas um jeito de a deixar perto de uma carta Clow (sem que ela note que é isso que ele quer fazer).


Nesse episódio, Sakura luta contra a carta da água, e descobre que algumas coisas são incontroláveis. Não apenas a natureza e suas forças, mas também descobre que o destino é incontrolável, que sua família vai sempre ser um conforto nos momentos mais inusitados e que bons amigos são aqueles que topam qualquer doideira nossa – mesmo quando acham alguns dos nossos planos arriscados.


E parece algo óbvio. É bobo, pensando pelo ponto de vista de que qualquer adulto racional entende esses padrões naturais da vida. Mas na ideia da história, que foi escrita e depois adaptada em animação para crianças, a coisa não é por aí… Sakura está mesmo descobrindo quem é, e como quer viver.


Nesse contexto, enquanto amadurece e se descobre, Sakura segue sua formação pessoal enquanto desenrola a trama das cartas. E a cada novo dia, descobrimos algo um pouco incomum no coletivo cultural dos anos 90/2000 para garotas ocidentais: Sakura ama ser uma garota.


SER GAROTA É LEGAL!


“Sakura Card Captors” fez mais uma proeza em pleno início dos anos 2000: disse que estava tudo bem ser uma garota que ama ser uma garota.


Bobagem? Parece, não é? Mas a verdade é que a televisão aberta oferecia desenhos pela manhã em canais familiares, e música à tarde em canais musicais, enquanto explorava sistemas familiares durante a noite, nos mesmos canais familiares.


Parecia existir um consenso, naquela época, de que todas as crianças estudavam de tarde. Logo, a programação infantil era toda gasta de manhã, e as crianças e pré-adolescentes (como eu) que frequentavam a escola durante às sete até o meio-dia, só tinham o fim da programação dos programas infantis matutinos para suprir conteúdo infantil. É por isso que a maioria de nós – adultos que estudavam de manhã no início dos anos 2000 – se lembram de toda a introdução de “X-Men: Evolution”, mas muito pouco de “A vida e as aventuras de Juniper Lee”.


Claro, quem tinha TV à cabo a conversa era outra… Mas de modo geral, a parte da tarde (em especial para crianças criadas em apartamentos sem opções de lazer) não tinha conteúdo na televisão. Ou passávamos a tarde assistindo TV Cultura (que mais passava desenhos maternais nesse horário), ou escolhíamos entre canais de música ou Sessão da Tarde.


Nem sempre a Sessão da Tarde era interessante, mas quando era, exaltavam protagonistas femininas que “não eram como as outras garotas”. Os canais de clipes rivalizam garotas sensuais com garotas descoladas, e a gente aprendia com o que via. “Rebelde” e “High School Musical”? Mais rivalização, e ser a garota que amava ser uma garota era sempre um pecado capital.


10 coisas que eu odeio em você” tem duas irmãs feministas (Bianca não parece por causa da aparência), mas é a irmã “que gosta de ser uma garota” que é a figura vilanizada. O mesmo acontece com “Grande menina, pequena mulher”, “As patricinhas de Beverly Hills”, “Vestida para casar” e – pasme! – “Legalmente loira”. Mesmo com todas essas garotas padrões sendo as protagonistas de suas histórias, o ar ao redor delas as acusa de futilidades e bobagens por amarem ser garotas. Era difícil ser uma criança/pré-adolescente naquele início de século…


Mas em “Sakura Card Captors” isso não acontece. E isso abre portas de discussão sobre o que consumimos naquela época e o que queremos valorizar hoje.


Sakura e suas amigas são todas vaidosas (contexto social e cultural, óbvio), que amam ser garotas – usando muito rosa, colecionando bichinhos de pelúcia e gostando de acessórios e roupas femininas –, mas cada uma tem algo que “é diferente das outras garotas”.


Apesar do contexto e da idealização de mulheres que gostam de ser mulheres (em especial as que vivem seus feminismo e seguem amando e enaltecendo a feminilidade padrão) ser algo recente na cultura atual, “Sakura Card Captors” já pregava o conceito há mais de vinte anos. E fez tudo isso, mostrando como Sakura amadurecia e se tornava, gradualmente, uma mulher.


Olive Marie ♥

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